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Este artigo foi originalmente publicado na edição Inverno 2022/23 da Time Out Lisboa.
Esgotado. A palavra, tantas vezes elogiosa, é também sinónimo de frustração para quem tenta, há dois anos, comprar bilhetes para Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, espectáculo de Tiago Rodrigues que tem tido sala cheia sempre que está em cartaz. Em Janeiro [de 2023] estará novamente em palco. Mas os bilhetes já voaram em Outubro. O caso pode parecer especial, dado o burburinho criado em torno da peça, que imagina um Portugal de 2028 governado por populistas de extrema-direita. Tanto é que, quando foi levada à cena em Roma, um deputado chegou a pedir que fosse retirada. No entanto, está longe de ser caso único nos teatros de Lisboa. É frequente as peças esgotarem antes mesmo de se estrearem, com um reduzido número de apresentações.
A apologia ao teatro na cidade faz-se hoje através de uma oferta que programadores e directores artísticos dizem ser “adequada”, que inclui um grande número de peças, mais diversidade em quem as cria, mas menos tempo para que sejam apreciadas. O actor e encenador João Reis dizia em Setembro, em entrevista ao Observador: “Há uma espécie de voracidade das estreias permanentes, essa vertigem é altamente prejudicial para todos”.
De todas as peças que passaram em 2022 pela sala principal do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), por exemplo, só uma foi além das habituais nove sessões: Casa Portuguesa, espectáculo de abertura de temporada e a primeira com Pedro Penim como director artístico, que fez 19 apresentações. “Essa forma de funcionamento [carreiras curtas] foi de alguma maneira potenciada pelo aparecimento de mais companhias, de muitas pessoas a fazerem coisas e obviamente a incapacidade das instituições de lidarem também com essa produção”, afirma Penim à Time Out. “Neste momento há várias urgências: por um lado, perceber como é que esses artistas que estão a criar, onde é que eles se podem apresentar, e uma necessidade de eventualmente haver mais salas de teatro que possam acolher estes artistas, porque as salas são obviamente finitas e os orçamentos também”.
A questão orçamental é premente na discussão. No caso do Teatro da Trindade, cuja gestão está a cargo da Fundação Inatel, afirma o director artístico, Diogo Infante: “O investimento que nós colocamos, não só artístico, humano, mas também financeiro, carece de um tempo natural para que ele possa ser recuperado”. É uma posição contracorrente nesta ideia de parcas apresentações em prol de mais diversidade de projectos. “Assumidamente vivo da receita. Preciso de gerar receita para pagar as produções e por sua vez continuar a produzir. Portanto, tenho vindo progressivamente a aumentar a duração das carreiras. O mínimo eram oito semanas e, neste momento, conforme obviamente o potencial dos espectáculos, o Diário de Anne Frank está em cena quatro meses.” E está esgotado.
Diogo Infante, que já dirigiu o Teatro Maria Matos e o TNDMII, crê que “muitas das estruturas com capacidade de produção, e que dependem exclusivamente do Estado, estão mais preocupadas com a lógica de serviço público, no sentido de apresentar muita quantidade, mas não de haver muita durabilidade dos projectos”. E continua: “Tenho muita dificuldade em relacionar-me com essa lógica, porque acho que o público normal tem direito a ver os espectáculos, e sobretudo espectáculos que são feitos com dinheiros públicos”. “Se formos ao CCB, se formos à Culturgest, se formos ao São Luiz, ao próprio Teatro Nacional, as carreiras efectivamente são curtas, ao Teatro Nacional de São Carlos, é praticamente impossível uma pessoa ver uma ópera, um bailado. Há uma lógica que não conta do retorno, que não precisa, e como não precisa podem se dar ao luxo de fazer curtas carreiras e de fazer muitos projectos diferenciados. O que é bom porque dá variedade, mas efectivamente não dá a possibilidade ao público dito normal de ter essa fruição, porque se não forem ágeis correm o risco de já ter esgotado”.
No Centro Cultural de Belém (CCB), o número limitado de récitas tem vários motivos, esclarece Fernando Luís Sampaio, programador de teatro, dança e músicas plurais deste espaço, a começar pelo “grande exercício interno de harmonizar calendários entre a parte comercial e a parte programática, cultural”. Refere-se à necessária “coexistência” com o Centro de Congressos, de onde “vem grande parte do dinheiro com que a fundação financia a sua programação cultural”. Há ainda as “contingências que decorrem dos compromissos que as companhias vão tendo na sua circulação”, e ainda o facto de o CCB programar “dança, teatro, ópera, concertos de câmara, concertos de jazz, pop rock e por aí fora”. “Se fossemos uma casa só de teatro, seria mais fácil”, argumenta.
No caso do CCB, é também uma questão de dimensão. Para efeitos comparativos, a Sala Garrett do TNDMII tem 444 lugares, a Sala Luís Miguel Cintra, no São Luiz, tem lotação máxima de 690 lugares. "O Grande Auditório [do CCB] é muito difícil de esgotar, são 1400 lugares. Às vezes esgota, como agora, com a Catarina. Mas isto é consequência não só da qualidade da peça e da pertinência da peça, mas também com o barulho mediático que se fez à volta dela e por todas as razões e mais alguma, e isso também arrasta muito público”. A Time Out tentou contactar Tiago Rodrigues, por diversas vias, para abordar este seu fenómeno de popularidade, mas o actual director do Festival d’Avignon mostrou-se indisponível.
O fruto proibido (ou neste caso, exclusivo) é o mais apetecido e há quem sinta os efeitos desta concentração de público em poucos dias, nomeadamente as estruturas menores e independentes. “Porque é que neste espectáculo, nesta segunda e terceira semana temos uma quebra de público? Ah, espera, porque nas grandes salas estão a estrear espectáculos que atraem muito público e que só estão quatro dias.” A conclusão é de Ruy Malheiro, co-director artístico da Escola de Mulheres, companhia que apresenta e programa no Clube Estefânia. “O público acaba por ir àqueles espectáculos que mais rapidamente fecham e guardam aqueles que estão com umas temporadas mais alargadas para o final”, teoriza. As criações próprias da Escola de Mulheres, que recebe apoio da DGArtes, têm temporadas de três a cinco semanas. “Envolve muita gente, envolve muito dinheiro e há que tentar rentabilizar ao máximo os espectáculos até para justificar esse investimento”.
No universo da dança, o escasso número de récitas não é um problema de agora. Em Junho, Deste Mundo e do Outro, o regresso de Olga Roriz ao Teatro Camões e à Companhia Nacional de Bailado (CNB), mostrou-se apenas quatro vezes. Dias antes, a coreógrafa dizia à Time Out: “Não me parece que não esteja no momento de começar a insistir em ter mais récitas para dança. Acho que os programadores também sabem isso. Temos falado e eu pelo menos, como Companhia, tenho falado com os programadores sobre isso”. É que “não é só a questão de serem poucas récitas, é o fast food”, acusa. “Há muita produção. Os grandes teatros têm de fazer programação e têm de incluir muita gente porque senão fica muita gente de fora. E depois em Lisboa nós não temos um teatro bom que não seja um CCB, ou este [Teatro Camões] que também é enorme, para dança independente”, continua. Em 2023, as seis récitas que fará no São Luiz com A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros, de Peter Handke, já são uma conquista.
Nesse Teatro Municipal, a sua directora artística, Aida Tavares, reconhece que “é uma questão que já se discute há muito tempo”, que “de facto, na maior parte das salas, é insuficiente o número de récitas que se faz de cada espectáculo”, mas que não é o caso do São Luiz. Argumenta que ali se fazem “temporadas largas, grandes”, e dá como exemplo A Reconquista de Olivenza, a segunda colaboração de Ricardo Neves-Neves e Filipe Raposo, que tornou ao São Luiz em Outubro e esteve em cena quatro semanas. “Tem de haver um tempo para comunicar e para as pessoas também terem acesso a essa comunicação”, diz, lembrando que estreias permanentes implicam uma “dificuldade enorme do ponto de vista da comunicação” e destroem a possibilidade de um espectáculo se encher com o “boca a boca”.
No extremo oposto, carreiras mais extensas colocam outros desafios. A começar pelo número de estruturas apoiadas. Ter uma peça em cena dois meses, por exemplo, levaria a um “afunilamento quanto ao número de projectos” apoiados. “Se faço temporadas o dobro daquilo que faço [actualmente] vou teoricamente apoiar metade das companhias ou dos criadores”, explica. Ademais, um espectáculo mais tempo em cena é teoricamente mais caro – sobretudo quando implica orquestra ou pagar “fortunas” em hotéis para o elenco, no caso de peças internacionais –, mas “também gera mais receita”, apesar de, garante Aida, a questão comercial não ser prioritária naquele teatro. “Há outros teatros na cidade que têm essa missão”, diz. O Teatro São Luiz “tem de dar lugar a nomes da cena nacional, naturalmente, tem de ter uma preocupação com jovens emergentes, a questão da internacionalização, enfim, são uma série de missões numa só”. Missões várias para condensar a cada nova temporada, sem descurar a sensibilidade de identificar “projectos que são naturalmente mais imediatos no apelo ao público” e cuja probabilidade de esgotar é elevada. É o caso de Uma Bizarra Salada”, que se estreou em 2012, com Bruno Nogueira e encenação de Beatriz Batarda. “Era um espectáculo com orquestra e esgotou”, lembra Aida, que o quis trazer de volta. Regressa em Fevereiro [de 2023], para “uma temporada maior, porque é o Bruno Nogueira e sabemos que o Bruno é fácil de trazer público”. Não deixa de parecer um “maior” comedido: na altura teve quatro récitas, agora terá seis.
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