[title]
Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 671 — Outono 2024.
“Irreconhecível”. A primeira palavra da reedição de Uma longa viagem com António Lobo Antunes, do jornalista e escritor João Céu e Silva, desencadeou uma polémica que contrapõe interesse público e direito à privacidade. Em causa está o facto de esta nova versão do livro, originalmente publicado em 2009, revelar que “a mão” de Os Cus de Judas, Manual dos Inquisidores ou Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura parou de escrever e que o autor, Prémio Camões (entre muitas outras distinções e comendas), se retirou da vida pública por sofrer de demência.
A informação veiculada pela editora Contraponto – do grupo Bertrand – e a notícia feita a propósito pelo Expresso, antes do lançamento deste volume da série “Uma Longa Viagem”, foram recebidos com reprovação nas redes sociais, em particular pelo jornalista e escritor Rodrigo Guedes de Carvalho. Numa publicação intitulada “As hienas à volta do Lobo”, feita no Facebook, o também escritor tece várias críticas, em particular ao acto de “publicitar aos quatro ventos o que era uma informação do mais privado foro familiar, decoro respeitado pela editora de sempre de Lobo Antunes”, referindo-se à Dom Quixote, selo editorial do grupo LeYa.
À Time Out, João Céu e Silva confessa-se “surpreendido” com tal reacção, justificando a razão para ter revelado o estado de saúde de António Lobo Antunes (ALA). Desafiado pela Contraponto a rever o seu livro de entrevistas ao escritor, o jornalista optou por condensar o material original, juntando-lhe as notícias, as conversas e as reportagens que fez sobre ALA desde então até 2019. “Esta nova edição é um retrato aumentado, completo, de quem foi Lobo Antunes. Porque ele era um escritor – era O escritor – que vivia para a escrita. Na vida dele pouco ou nada mais existia e hoje em dia não escreve. Portanto, se não escreve, se perdeu o principal interesse, isso é uma situação importante de estar no livro”, atira.
“Nos últimos anos, a sua saúde tinha piorado, designadamente a nível mental. Ele já tinha deixado de escrever, não reconhecia as pessoas, e aí colocou-se-me um gravíssimo problema que foi: devo dar notícia disto ou não?”, questiona. No seu entender, sim, porque se trata de honrar um compromisso com os leitores. “Se nós tivéssemos um livro destes em Inglaterra ou nos Estados Unidos e que saísse sem a caracterização do seu actual estado de saúde, seria imediatamente abatido, proscrito. Diriam ‘este livro mente, porque muitos dos leitores sabem que o ALA está incapacitado e o livro não refere isso’”, defende Céu e Silva.
Se tivéssemos um livro destes em Inglaterra ou nos EUA que saísse sem a caracterização do seu actual estado de saúde, seria imediatamente proscrito.
A solução, entende, passou por reduzir o tema “à mínima expressão possível” no livro. “Eu nunca sou intrusivo, não pretendo dizer mais do que aquilo que posso dizer”, afirma, acrescentando que, de todos os livros desta série biográfica (na qual já escreveu sobre José Saramago, Manuel Alegre, Álvaro Cunhal, Maria Filomena Mónica), foi nas duas edições sobre ALA aquelas em que mais se autocensurou. “Nunca coloquei tudo aquilo que ele disse sobre pessoas e situações que eu considerava que invadiam a vida privada de quem falava. Portanto, eu até posso ser criticado por não ter reproduzido o que tinha nas gravações e que tinha sido falado em on. Se eu quisesse fazer escândalo, teria aproveitado todas essas coisas”, diz.
Rui Couceiro, editor da Contraponto e responsável pela reedição de Uma longa viagem com António Lobo Antunes, defende o seu autor e a divulgação do tema. “Não considero nenhum problema de saúde um motivo de vergonha ou algo que faça sentido esconder. Não são escolhas, são coisas que nos tocam a todos. Por isso, a breve referência feita neste livro ao estado actual do escritor pareceu-me natural, desde logo porque explicava a interrupção das dezenas de conversas tidas entre João Céu e Silva e António Lobo Antunes”, esclarece, em resposta à Time Out.
A breve referência ao estado actual do escritor pareceu-me natural, desde logo porque explicava a interrupção das conversas entre Céu e Silva e Lobo Antunes.
O estado de saúde de ALA era um tema discutido em surdina há algum tempo, em particular porque era tradição o escritor publicar com uma periodicidade anual quase ininterrupta no mês de Outubro. O facto de O Tamanho do Mundo, de 2022, não ter sequência no ano seguinte não passou despercebido e chegou a ser notícia. Para Céu e Silva, a confirmação chegou numa chamada telefónica em Dezembro de 2021, já que ambos mantinham contacto próximo desde que o jornalista passou tardes a entrevistá-lo para o primeiro livro. “Não sendo médico, não me foi difícil diagnosticar que havia ali um gravíssimo problema”, afirma. Ao choque dessa chamada seguiu-se a confirmação de pessoas próximas a ALA de que se tratava de demência, algo que passou a ocupá-lo durante a restante feitura do livro. “Dois dias antes de entregá-lo, voltei a confirmar se a situação se mantinha. E, pelo contrário, agravou-se”, conta.
Este episódio a envolver uma personalidade com a importância pública de ALA traz à memória Bruce Willis, que em 2022 foi forçado a retirar-se por sofrer de afasia. A diferença, contudo, é que no caso do actor norte-americano foi a família que fez o anúncio do seu estado de saúde. Com ALA, não, sendo que os seus entes próximos optaram por não falar à Time Out sobre a situação, nem Céu e Silva confirma ter obtido o seu aval para veiculá-la no livro. O jornalista, no entanto, denuncia “uma grande hipocrisia” que diz grassar em Portugal no que toca a ocorrências como esta. “Os portugueses têm o vizinho que sabem que está doente mas só cochicham, têm estas situações e depois se alguém o torna público – sem intuito de ganhar alguma coisa com isso, apenas porque é a realidade – é crucificado porque disse aquilo que todos sabem”, argumenta.
A par da suposta indiscrição quanto à privacidade de ALA, outra das acusações feitas a Céu e Silva e à Contraponto é de que terão aproveitado para lançar esta reedição justamente no mês em que o romancista normalmente publicava para lucrar com a circunstância, algo que o jornalista repudia, falando em “coincidência”. Céu e Silva diz que não só ALA não foi a única opção para reeditar uma “Longa Viagem” – Saramago também foi cogitado, mas já tinham saído vários livros sobre o Nobel –, como esta obra era para ter saído em Maio, o que não aconteceu por atrasos sucessivos resultantes da tentativa de reduzir as cerca de 500 páginas da primeira edição para um volume mais pequeno.
No decurso da conversa, o autor revela ainda que a LeYa fez “pressões para que o livro não saísse”, algo que o grupo editorial nega pela voz do seu administrador, Pedro Sobral, dizendo defender a liberdade de publicação. “Relativamente à forma como a LeYa olha para putativos ou eventuais impedimentos, há declarações públicas várias no passado (minhas) sobre a matéria”, responde, adiantando não querer fazer mais nenhum comentário sobre o caso. De resto, o editor da Contraponto, Rui Couceiro, quando indagado sobre possíveis repercussões legais quanto às informações reveladas, afirma que tal questão “não tem sentido, porque as editoras não respondem pelos textos que publicam”, sendo “da responsabilidade dos autores”. “De todo o modo, felizmente, em Portugal, existe liberdade de expressão e ninguém tem de pedir autorização a outrem para escrever ou falar”, conclui.
Cessada a controvérsia e publicado o livro, Céu e Silva comenta que o feedback recebido pelos leitores tem sido positivo e que “a matilha que falou mal também não estava interessada nele”. “Depois de sair o livro, já tive várias pessoas a dizer ‘afinal não é nada disso’”, indica. Apesar de não arriscar caracterizar a sua relação como sendo de amizade, o jornalista diz que tinha “grande intimidade” com ALA e que o seu intuito foi desde sempre “honrá-lo”. “Eu considero que é um dos maiores escritores portugueses desde que existe Portugal. Existem mais três ou quatro, mas ele é um dos maiores. Portanto, eu não tenho qualquer interesse em desmistificar aquele escritor que eu esperava que tivesse ganhado o Prémio Nobel, ainda tive essa esperança”, termina.
📯Não foi por falta de aviso. Subscreva a newsletter
⚡️Prefere receber as novidades sem filtros? Siga-nos no Instagram