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Se não for pelo telhado, até o vale de um rio pode ser uma casa

‘ZÉNITE’ conta a história de seis pessoas e do lugar onde habitam. Estreia esta quinta-feira nas ruínas de uma propriedade no vale do rio Trancão.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
ZÉNITE
© Filipe FerreiraZÉNITE
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Entre este rio, este vale e estas ruínas, vivem seis pessoas. Encontraram-se depois de perderem o seu tecto, o seu chão, a sua casa. Uns nos outros, encontraram uma comunidade, uma espécie de família, composta como se de uma manta de retalhos se tratasse. E foi neste rio, neste vale e nestas ruínas que deram por si a viver, longe dos demais. Quando não estão a atravessar o rio de barco, ora estão no vale, onde habitam uma casa sem chão, ora estão nas ruínas, onde habitam uma casa sem tecto. Uma coisa é certa, daqui não sairão tão cedo, pois aqui encontraram o que lhes faltava, ou por aqui ainda o procuram. ZÉNITE é destas seis pessoas que pelo rio, pelo vale e pelas ruínas caminham e, por cá, se deixam ficar. 

Produzida pela outro, estrutura de investigação e criação artística dirigida por Sílvio Vieira, que assina a encenação, ZÉNITE é a peça encerra a trilogia de Arena (2021) e Equador (2023). Tal como as duas primeiras, esta última obra parte do espaço em que é apresentada, sendo essa a ideia central que percorre as três peças. A primeira peça aconteceu numa garagem, a segunda na Black Box do CCB e, para esta, o encenador sabia que queria que fosse ao ar livre. Foi na Bobadela, na antiga Quinta da Barroca, localizada no vale do rio Trancão, que encontrou um sítio tal como idealizava. Naturalmente, o processo de criação só começou realmente quando decidiram que seria este o espaço para ZÉNITE. “A ideia é que o espaço funcione como um texto num processo tradicional, mais tradicional de teatro. Portanto, nós pegamos no espaço e é o espaço que motiva as improvisações, a dramaturgia, os figurinos, a cenografia”, explica Sílvio Vieira, após um ensaio no local.

ZÉNITE
©Filipe FerreiraZÉNITE

Tudo começa no miradouro, ao pôr-do-sol. É de lá que vemos um barco a chegar a uma das margens do rio e a deixar parte do elenco em terra para se juntar aos restantes, que por ali já estavam. À boleia de uma voz que nos narra acerca da paisagem e do que estamos a ver, o cenário vasto torna-se, naquele momento, o palco onde a acção se começa a desenrolar. E à medida que atentamos naquela visão microscópica, chega a hora de nos levantarmos e seguirmos caminho em direção ao vale. Ao mesmo tempo que descemos pelo trilho que vai dar às ruínas da quinta, as seis pessoas que conhecemos lá em cima também fazem o seu caminho. É quando chegamos ao vale, após passar pelo edifício em ruínas, que os voltamos a encontrar. Desta vez, frente a frente, vemo-los maiores que um grão de arroz. Vestidos com jardineiras de pescador, eles passam por nós, olham-nos estranhamente e afastam-se lentamente para o pântano nas nossas costas. 

Com calma, eles chegam à primeira casa, enterrada no meio da vegetação. A par das ruínas da propriedade, que não têm tecto, esta estrutura branca acaba por simbolizar esse telhado que desapareceu, que até pode ter voado com o vento. A imagética que, aos poucos, se compõe relaciona-se directamente com a ideia principal por detrás da peça, que parte de uma questão estética, mas também social. “Não temos tecto, portanto essa relação com esta questão social de o que é que é uma pessoa, ou um grupo de pessoas que não têm tecto, seja porque aconteceu uma catástrofe, seja porque não têm dinheiro para pagar a renda, este elemento concreto, real, social existe e está presente no espectáculo”, realça. Aliada a esta ideia, a casa no pântano quer ser algo onírico. “Todos os elementos que nós adicionámos à paisagem, estamos a pintá-los de branco, como se eles pertencessem a uma zona que não é totalmente real, mas mais fantasiosa, da imaginação deles, ou que possa ir de encontro a cada uma das narrativas destas seis figuras.

ZÉNITE
©Filipe FerreiraZÉNITE

Pelo mesmo caminho por onde viemos, voltamos às ruínas da propriedade. Dentro do edifício a céu aberto, esperam-nos as seis figuras, que se veem envolvidas em tarefas que fazem aparentemente parte do seu quotidiano. Quando entramos, somos convidados a sentar-nos em blocos de cimento que fazem a vez da plateia. Para a cenografia da peça, co-produzida pelo Teatro Nacional D. Maria II, foi utilizado entulho das obras de requalificação do teatro, o qual foi transformado em blocos de cimento, no sentido de criar aqui o Teatro Zénite, acção que procura perdurar a utilização do espaço para lá da apresentação do espectáculo.

De seguida, somos levados para outra parte da propriedade, que se apresenta tal e qual uma sala de teatro. Somam-se as filas de cadeiras e, em frente, uma elevação que faz lembrar um palco, com uma grande cortina vermelha aberta a meio. Sob o palco, entulho por todo o lado. Esperamos alguns minutos e, lá em cima, voltamos a ver as seis figuras que acompanhámos ao longo do percurso. Porém, apresentam-se de maneira diferente. Além do vestuário, também os comportamentos mudaram. Ao passo que até aqui não falavam e interagiam entre si de forma rudimentar, é agora que ouvimos as suas vozes pela primeira vez. Uma delas sobreviveu à guerra, outra não tem casa, os outros são nómadas. Mas, não falam para o público, falam para a voz que esteve sempre perto de nós desde o início desta viagem, desde o miradouro. Vinda do céu, de casa, ou da paisagem, a voz desta mulher que o grupo perdeu, quer saber acerca do seu dia, do que fizeram, do que viram, do que sentiram, e do que sentem. O texto, de Sílvio Vieira, inclui excertos do elenco, bem como depoimentos de sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki, retirados de um artigo da Time

ZÉNITE
©Filipe FerreiraZÉNITE

À medida que o vento se levanta, ou os aviões sobrevoam o palco, as seis figuras não são imunes a estes elementos exteriores e, por isso, acabam por incorporá-los na sua representação. Entre paredes que ameaçam ruir, um vale pantanoso, as águas calmas de um rio, e um miradouro que nos dá uma perspectiva diferente, o espaço torna-se, inevitavelmente, um dos grandes protagonistas da peça. Mas, apesar da importância que carrega, o espaço não deixa de trazer receios. “[Estamos] sempre na iminência de sermos vencidos por ele. Estou sempre a pensar nisso. Ainda não tenho a certeza se nós não vamos chegar à conclusão que falhámos numa série de coisas porque o espectáculo tem imensas falhas, e isso é uma possibilidade”, confessa o encenador. Vencidos ou não por ele, o espaço de ZÉNITE não deixa de trazer consigo uma réstia de esperança para estas seis pessoas. 

Teatro Zénite (Bobadela). 27 Jun-21 Jul. Sex-Dom 20.30. 12€

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