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Segurança em Lisboa: o Cais do Sodré tornou-se “uma bomba-relógio”

Insegurança, tráfico, violência, abandono. Trabalhadores do Cais do Sodré estão cansados e exigem mudança na política territorial, enquanto lisboetas são cada vez menos a frequentar a zona. Situação foi levada à Câmara.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
Jornalista
Início da noite na rua cor-de-rosa
Francisco Romão PereiraInício da noite na rua cor-de-rosa
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“Sinto que deixaram o Cais do Sodré ao abandono”, começa por dizer Ana Paula Afonso, gerente do Roterdão Club. Pouco policiamento, falta de vigilância, iluminação deficitária e um sentimento de impunidade e de injustiça relativamente aos crimes cometidos no espaço público, como roubos, assaltos, assédio e outras formas de violência, são algumas das queixas da responsável, às quais se juntam outras vozes de gestores da actividade nocturna no bairro. 

Marginal, o Cais do Sodré sempre teve as suas particularidades, com picos de violência à mistura, mas “agora está muito pior e funciona de uma forma diferente”, atesta João Nogueira, gerente do Musicbox. Uma das mudanças relaciona-se com o tráfico de droga ou daquilo que muitos suspeitam serem “armadilhas para turistas”, às claras, por grupos organizados. “São dealers ou pseudo-dealers que vendem e roubam turistas todos os dias. É uma coisa que não existia há uns anos e que, na nossa rua [a Rua Nova do Carvalho, cor-de-rosa desde 2011], os seguranças acabam por controlar, mas nas periféricas, acontece muito”, descreve o responsável. Todas as noites, nas esquinas das ruas transversais e nas diferentes entradas para a chamada rua cor-de-rosa, grupos de homens aliciam quem passa com palavras como haxixe ou coca. Também não é um problema novo em Lisboa, mas, no Cais, tem gerado uma percepção de desconforto e insegurança, escalando por vezes para situações de violência.

“Já tive situações de venda de droga dentro do meu espaço. Um deles, que tivemos de pôr fora, chegou a ameaçar-nos de morte. Nestes casos não podemos fazer mais do que expulsá-los. Se a polícia estivesse ali, seria muito mais fácil lidar com a situação”, conta Ana Paula Afonso. Mais à frente, Pedro Ivo Carvalho, que gere um restaurante no Cais (prefere não identificá-lo neste artigo), conta como os vendedores pressionam os clientes junto às caixas Multibanco, abordam "pais com carrinhos de bebé" ou reagem com violência física perante reclamações de quem se sentiu enganado.

A par dos vendedores, a maior concentração de pessoas neste eixo do Cais do Sodré, maioritariamente turistas, trouxe uma dinâmica diferente à zona, tornando o roubo mais fácil e frequente. "Todos os dias há pessoas a queixarem-se de alguma coisa", diz João Nogueira. Tudo isto a acontecer em paralelo com uma diminuição da presença policial na zona. O Cais do Sodré tornou-se, assim, uma zona onde se está “muito à vontade”, nas palavras do responsável do Musicbox. 

Rua Nova do Carvalho, Cais do Sodré
Francisco Romão PereiraRua Nova do Carvalho, Cais do Sodré

“Até ao final do ano passado, havia aqui uma esquadra móvel, sempre. Isso acabou. Agora, os polícias aparecem sobretudo quando são chamados, ou seja, quando as situações já escalaram”, prossegue João Nogueira. A responsável do Roterdão segue a mesma linha: “Desde que deixámos de pagar os gratificados [diferentes estabelecimentos pagavam para ter agentes da PSP na zona] através da Associação de Comerciantes do Cais do Sodré, há menos polícia na zona. E, recentemente, até na Praça Duque da Terceira é raro ver as carrinhas da polícia. Dizem que há falta de efectivos, mas o certo é que em alturas como a Web Summit ou as Jornadas da Juventude, a polícia multiplica-se. Ou, por exemplo, quando elementos da segurança pública são assaltados, como aconteceu em Novembro de 2023, creio, a resposta não só foi rápida mas também massiva. Quando há situações destas eles aparecem”, mas não existe uma vigilância preventiva, queixa-se a gestora. 

Acresce ainda outra queixa: o sistema de videovigilância prometido em 2021 tarda em chegar (já em 2018, Fernando Medina havia anunciado a cobertura por câmaras desde o Cais até às Docas). Para o Cais do Sodré, estão previstas 30 câmaras, de um total de 216, de acordo com o anunciado há um ano por Carlos Moedas. Os únicos equipamentos de captação de imagem a funcionar no Cais do Sodré, hoje, são de estabelecimentos privados, mas o seu raio de acção circunscreve-se às áreas de concessão de cada estabelecimento, por respeito ao direito à privacidade. 

“Não reconheço esta cidade”

Mais presença policial e videovigilância também fazem parte das exigências de Pedro Abril, mas o responsável pela cozinha da Crack Kids assume que “o problema é complexo”. Do outro lado do Cais do Sodré, junto ao terminal fluvial e às estações de metro e de comboio, o ambiente indica a urgência da cidade em resolver problemas de fundo, como o número crescente de pessoas sem-abrigo, a acumulação de resíduos urbanos e problemas de limpeza, a desregulação do comércio, a descaracterização da cidade ou a falta de fiscalização quanto ao cumprimento das regras dos estabelecimentos comerciais.

Nesta linha ribeirinha, uma “zona cinzenta” e “esquecida”, em que “o Porto de Lisboa chuta para a Câmara e a Câmara para o Porto de Lisboa”, na descrição de Abril, a dinâmica é outra, embora não melhor. Pessoas a vender “droga” nas esplanadas, roubos de mochilas, consumo de drogas pesadas às claras, “muita movimentação e comércio, com barracas montadas em todo o lado”, compõem o cocktail. “Desde que anoitece até de manhã, é um stress. Tornou-se uma bomba-relógio”, qualifica o responsável, lembrando que, nos últimos anos, este “foi um eixo que ganhou alguns bares vindos da rua cor-de-rosa e também novos, os afters e muita gente a dormir na rua”. 

O que aconteceu? “Não sei muito bem explicar como isto chegou até aqui. É um movimento muito esquisito. Sempre vivi no centro de Lisboa e não reconheço esta cidade. É tudo muito twilight”, lamenta Pedro Abril, considerando “chocante ver que isto acontece todos os dias e que nada muda”.

A polícia não pode fazer tudo

O Cais está a perder a aura? “Está”, responde João Nogueira, sem hesitar, apontando o início desta transformação para o pós-Covid, quando surgiu “uma vaga gigante de violência” na zona. E Ana Paula Afonso completa o quadro: “Tenho amigos que deixaram de ir ao Cais do Sodré.” O assunto foi levado em Setembro à Câmara Municipal de Lisboa (CML) por um grupo de empresários do bairro e a pressão faz-se também por escrito a diferentes entidades. De dois em dois meses, a gerente do Roterdão envia e-mails à CML, à Junta de Freguesia da Misericórdia e à Polícia de Segurança Pública (PSP) a pedir acção. A PSP diz ter poucos efectivos, a Câmara não responde, a Junta diz que não é da sua responsabilidade ou âmbito de actuação, partilha a responsável.

Rua Nova do Carvalho, Cais do Sodré
Francisco Romão PereiraRua Nova do Carvalho, Cais do Sodré

Contactada pela Time Out, fonte da esquadra da PSP do Bairro Alto explica que “às sextas e sábados, são encaminhados para o local elementos da Unidade Especial de Polícia”, “há polícia à paisana”; durante a semana, o patrulhamento é feito “à medida das possibilidades”, envolvendo também a esquadra da Rua da Palma. “Abarcamos uma zona com muita diversão nocturna”, refere a mesma fonte, acrescentando a nuance de que, “se houver um grande evento na cidade, como um jogo de futebol, por exemplo, os meios são desviados para lá”. A par da noite e dos eventos, crescem os pedidos de intervenção em diferentes zonas do centro de Lisboa, com especial atenção à Mouraria, bairro sobre o qual a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior chegou a organizar, em Julho, uma sessão de partilha de cerca de 40 testemunhos de moradores relacionados com a criminalidade. 

Como afirma Carla Madeira, presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, onde se inclui a zona do Cais, “a polícia não pode fazer tudo”. “É preciso mais policiamento, sim, mas o que está a acontecer é resultado de muita coisa”, prossegue a autarca, começando por apontar para a falha na implementação do sistema de videovigilância. “Apenas foram instaladas sete câmaras, das 216 prometidas. Quando as câmaras foram introduzidas no Bairro Alto, isso fez muita diferença. E agora as situações ficaram mais graves no Cais do Sodré…”, diagnostica. Mas, acima de tudo, defende Carla Madeira, “é preciso actuar na origem do crescimento da criminalidade”

Crítica sistemática do crescimento excessivo do número de estabelecimentos de venda de álcool desde o Bairro Alto até ao Cais, a autarca sublinha que há que “fazer cumprir as regras que já existem”. “Continuam a abrir mais e mais estabelecimentos, ao mesmo tempo, voltaram as discotecas after hours, fazendo o problema arrastar-se pela manhã afora... Depois, não há uma penalização dos que não cumprem as regras e está-se a deixar o problema crescer. É um barril de pólvora e continuamos, assim, com a imagem de que o crime compensa, porque não lhes acontece nada.” 

O direito à noite

Em suma, a presidente sente que “a Junta fala muito sozinha e que a Câmara não se preocupa verdadeiramente com o problema”. Questionada pela Time Out sobre as medidas planeadas para combater a insegurança no Cais do Sodré, a autarquia responde: “A Câmara Municipal de Lisboa tem manifestado, por diversas vezes, a sua preocupação com as questões da segurança na cidade de Lisboa, nomeadamente na zona do Cais do Sodré”, no entanto, este é “um tema da competência e responsabilidade da Polícia de Segurança Pública”. 

Não se pensa assim em todas as cidades da Europa, no entanto. Cada vez menos, até. Mas em Lisboa, “a noite continua a ser desprezada em termos de investimento público”, critica Gonçalo Riscado, gerente do Musicbox e director do MIL. Na edição deste ano do encontro, em Setembro, um dos temas em debate foi precisamente como “Gerir a Cidade Depois do Anoitecer” e na resposta as autarquias não ficam de fora. "Existem perto de 100 cidades que têm uma espécie de vereador da vida nocturna”, porque o equilíbrio entre o dia e a noite nas grandes cidades implica desenhar leis, articular segurança com economia e turismo, bem como ter o poder público a pensar e a financiar projectos culturais e para o espaço público, explicou Lutz Leichsenring, membro da Clubcommission Berlin, uma organização que representa mais de 350 clubes, promotores e instituições culturais na capital alemã.

Musicbox
Inês Calado RosaMusicbox

“Em Berlim recebemos financiamento de cinco departamentos da Câmara. Para nós, a noite não é sobre beber, é sobre cultura. Tem de ser uma parte activa de uma mudança social”, reclama Leichsenring. Assim, é preciso “mudar audiências”, fazer com que os destinos nocturnos “não sejam o foco de turistas que apenas procuram beber”, exemplifica, acreditando que a solução passa sobretudo pela criação de comunidade. “Muitas cidades pressionam para que haja mais vigilância policial. Nós acreditamos que a solução passa por existir mais sentido de comunidade. É como uma paragem de autocarro: se estiver vazia, ninguém quer ir para lá”, remata o alemão.

Da noite para o dia

Como Pedro Abril, da Crack Kids que, “se pudesse, saía do Cais”, ou como muitos lisboetas, que deixaram de frequentar o bairro, à falta de medidas, há empresários a adoptar estratégias como a mudança de horários para enfrentar o problema. Foi o caso de Pedro Ivo Carvalho, que, depois de testemunhar “muitas situações de violência e ameaças constantes”, decidiu mudar o negócio da noite para o dia. Em 2021 tinha aberto um bar e, em Janeiro deste ano, transformou-o em restaurante. “Corria bem, mas não queríamos andar mais com isto, continuar na noite”, conta. 

O empresário cresceu e vive em Lisboa e reconhece que “o Cais sempre será uma zona sui generis, com um grande trânsito de pessoas”, mas acha que isso não é desculpa. Nos últimos anos, “o incremento de pessoas não foi acompanhado das medidas de segurança necessárias”, sugere. O Cais do Sodré, na sua visão, caiu “em excesso” e “as pessoas aproveitaram essas brechas para entrar”. Duas semanas antes da conversa com a Time Out, testemunhou “uma guerra de pedras” que fez com que muitos dos que por ali passavam tivessem de abrigar-se no seu restaurante. “Aposto que este tipo de coisas já anda a circular por aí, nos grupos de turistas e tudo. Toda a gente sabe. Mas as pessoas vêm cá um dia, dois e depois podem não voltar. Quem acaba por sofrer todos os dias somos nós.”

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