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“Ser filho da vítima e também do carrasco é um fardo terrível”. O caso Pelicot contado pela filha

No novo livro autobiográfico, Caroline Darian relata como foi lidar com o caso da mãe, Gisèle Pelicot, e como foi sobreviver depois de tudo. 'E Deixei de Te Chamar Papá' sai a 11 de Fevereiro.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Gisèle Pelicot
Obatala-photography | Gisèle Pelicot a chegar ao tribunal em Avignon
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A 2 de Novembro de 2020, a vida de Caroline Darian mudou com um simples telefonema. A mãe ligava-lhe a informar que o seu pai, Dominique Pelicot, ia ser preso porque tinha sido apanhado a filmar por baixo das saias de três mulheres no supermercado. Na sequência deste acontecimento, o seu telemóvel, computador portátil, câmara de vídeo e cartões SIM foram revistados pela polícia. Estava prestes a ser revelado o inimaginável. Ao longo de quase dez anos, Dominique drogou e submeteu a mulher, Gisèle Pelicot, a abusos sexuais e violações cometidas por dezenas de homens, a quem pedia uma única coisa – para filmar. Estes actos, perpetuados sem o conhecimento da mulher, viriam a tornar-se destrutivos não só para Gisèle, mas também para o resto da família: para os amigos, para os filhos e para os netos, conta Caroline em E Deixei de Te Chamar Papá, livro autobiográfico que é agora publicado em Portugal.

Um caso histórico na justiça francesa 

O caso correu o mundo inteiro. Em Setembro de 2024 começava, no Tribunal Penal de Vaucluse, a primeira de cinco sessões do julgamento que se tornaria histórico e inédito na justiça francesa. Entre os 51 arguidos acusados de violações agravadas a Pelicot, estava então o seu ex-marido, que durante largos anos orquestrou crimes hediondos contra a ex-mulher. A 19 de Dezembro, quase quatro meses depois do início deste julgamento público, Dominique foi condenado à pena máxima de 20 anos, sendo que os restantes arguidos também foram considerados culpados e condenados a penas entre os três e os 15 anos, dois deles com penas suspensas. Além de ter aberto a discussão acerca do fenómeno da submissão química em França, a história de Gisèle Pelicot levou a que o seu nome se tornasse sinónimo de resistência e coragem, tendo até já sido criada uma petição para que Pelicot seja distinguida com o Prémio Nobel da Paz. 

Assim, a justiça prevaleceu. Dominique vai sofrer as consequências daquilo que fez e Gisèle pode respirar fundo. Aos 72 anos, está livre e pode começar de novo, deixando para trás o que, ao fim de tanto tempo, veio a descobrir acerca do seu casamento de quase cinco décadas. Mas, mesmo livre, ficaram as cicatrizes. Não só dela, também da família, em especial da filha Caroline, que decidiu, em 2022, publicar o seu testemunho em torno do caso. E Deixei de Te Chamar Papá – Quando a submissão química destrói uma família é um relato duro e extremamente pessoal de uma filha que, de repente, se vê a questionar o carácter de uma das pessoas que mais amou na sua vida. O livro chega a 11 de Fevereiro ao mercado português, traduzido por Joana Baudouin e editado pela Guerra e Paz. 

E Deixei de Te Chamar Papá
DR

“Ser filho da vítima e também do carrasco é um fardo terrível”, escreve Caroline nas primeiras páginas, dando-nos as primeiras luzes do que sentiu quando os segredos do pai vieram ao de cima e do que sente hoje em relação a ele. “Tentei em vão descobrir e compreender a verdadeira identidade do homem que me criou. Ainda hoje me pergunto como é que não vi nem suspeitei de nada. Nunca lhe perdoarei o que fez durante todos aqueles anos. No entanto, ainda tenho a imagem do pai que julgava conhecer. Apesar de tudo, essa imagem está enraizada em mim e nas minhas memórias”, continua umas linhas abaixo, reiterando como agora tentará fazer o luto deste homem, vivo e de boa saúde.

Neste prefácio, escrito dias antes do início do julgamento, Caroline dá-nos ainda um contexto do caso, das suas repercussões, bem como dados estatísticos que mostram como a submissão química é um problema que acontece em França, principalmente na esfera privada, mas que continua a ser desvalorizado. O resto da obra lê-se como um diário e começa no dia 1 de Novembro de 2020, prolongando-se por mais de um ano, ao acabar a 28 de Novembro de 2021.

Quando o pesadelo começa 

Começa então no dia em que Caroline fica a saber que o pai vai ser preso. Se não tivesse sido apanhado a filmar debaixo das saias de mulheres num supermercado, talvez nunca nada tivesse sido descoberto. A polícia encontrou mais de 20 mil fotografias e vídeos que retratavam Gisèle Pelicot semi-nua, inconsciente e a ser abusada ou violada por homens estranhos. A partir destas descobertas, tudo o resto se ficou a saber: ela era regularmente drogada pelo marido com uma mistura de lorazepam, uma molécula ansiolítica da classe das benzodiazepinas, e zolpidem, um hipnótico receitado para insónias graves; foi violada centenas de vezes por homens que Dominique contactava através de um site de encontros; e Dominique nunca exigiu compensação financeira, apenas pedia que pudesse filmar vídeos, que depois expunha na Internet e partilhava com estes homens.

Durante todo o processo, Gisèle Pelicot mostrou-se forte e resistente, tal e qual uma “rainha medieval”, uma “verdadeira heroína, de pé sobre as ruínas”, descreve Caroline, que por seu lado sempre teve dificuldades em esconder as emoções. Talvez por isto e também pelo facto da mãe, mesmo depois do que passou, ter continuado a mostrar piedade ou compaixão pelo seu marido, especialmente nas alturas em que ele lhe escreveu cartas a partir da prisão, a relação entre as duas chegou a sofrer alguns abalos. “É como se estivesse do lado do seu marido devasso. Por causa do meu pai, estou em vias de perder a minha mãe”, relatava Caroline, a 24 de Novembro de 2020, acerca de uma destas situações. David e Florian, os outros dois filhos do ex-casal, acabariam também por ser obrigados a escolher lados, o que contribuiu para a sensação de estarem cada vez mais divididos.

"Trouxeste-me um novo terror, o terror de dormir sozinha" 

E foi nesta altura que Caroline viria também a ser informada pela polícia acerca de duas fotografias suas, descobertas no arquivo do pai, em que ela se encontrava apenas de t-shirt e cuecas a dormir. Nem a própria Caroline se reconheceu nas imagens, foi preciso o agente da polícia perguntar-lhe se ela tinha efectivamente uma marca de nascença na bochecha para ela ter a certeza de que sim, era ela. Uns dias depois de saber isto, esteve internada num hospital psiquiátrico. Esta situação que parecia ser impossível de piorar, havia piorado. “Trouxeste-me um novo terror, o terror de dormir sozinha. Roubaste-me um sono sem medo. Eu tinha paz, tu tiraste-ma”, diz numa das várias passagens que endereça ao pai, ao longo de todo o livro. Apesar de o pai o ter negado sempre, Caroline acredita que Dominique também a drogou e a violou.

“Não o deixarei herdar a tua perversidade. Não deixarei que lhe faças mal. Vou proteger o meu filho de ti. Não, o crime não pode ser transmitido”, é a vontade que fica da sua vida de “antigamente”. Actualmente, Caroline tem como missão ajudar as mulheres que sofreram de violência sexual e submissão química, além de contribuir para melhorar o acompanhamento psicológico e médico das vítimas. Para isso, fundou a associação #MendorsPas: Stop Chemical Submission: Don’t Put Me Under, porque tal como a sua mãe, há muitas outras mulheres que podem estar a sofrer do mesmo mal.

E Deixei de Te Chamar Papá – Quando a submissão química destrói uma família, de Caroline Darian. Guerra e Paz. 182 pp. 17€ 

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