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“É um Top Gun da época.” A frase é de Miguel Damião e foi dita num final de tarde de rodagens no Palácio Pessanha, em Lisboa, onde se simulava uma noite de copos e dança no antigo Bristol Club, nos loucos anos 20 de há cem anos. Prestes a vestir o figurino que o ajudaria a vestir a pele do cartógrafo Gago Coutinho, para uma nova série da RTP1, o actor brincava com a comparação um pouco esticada com o filme protagonizado por Tom Cruise e que em Portugal se apresentava como Ases Indomáveis. A Travessia tem aviões e muitos indomáveis ases, mas a única batalha que faz parte desta história era a que competia pelos lugares no hidroavião que faria a primeira travessia do Oceano Atlântico Sul, entre Portugal e o Brasil. A data de estreia ainda não está definida, mas acontecerá no segundo semestre deste ano.
E se Damião é Gago Coutinho, Gonçalo Washington é o destemido piloto Sacadura Cabral, numa série com oito episódios produzida pela David & Golias (Variações) e realizada por Fernando Vendrell (Sombras Brancas), que co-assina o argumento. Uma história que dá também a conhecer outras figuras históricas menos populares, mas que desempenharam um papel importante nos tempos que antecederam a partida destes argonautas da modernidade, numa atribulada viagem iniciada em 1922. “O Fernando fez uma pesquisa muito grande e deu-nos logo muito material para nós lermos. O que é giro é que há muitas outras pessoas que estiveram ali envolvidas e esta vontade de se ultrapassarem, de fazerem coisas difíceis, um bocado sempre com aquela herança histórica de tentar atravessar os oceanos, neste caso os céus”, elogiou Waddington. E estudaram bem a lição antes de se aventurarem nestes voos. Damião, por exemplo, mergulhou nos cadernos de Gago Coutinho, tropeçando em conceitos como “vector de rumos” ou “horizonte artificial”. “Eu não sou entendido, não consigo decifrar aquilo. Portanto, fui até ao ponto de perceber a ideia geral das coisas. E depois parei, mas foi muito interessante ler essas questões todas e questões mais pessoais da vida dele. A série não vai tão profundamente à parte da vida pessoal, é mais sobre a época histórica da travessia, um bocadinho antes e depois, mas é tudo informação, não é? Como actor, tudo isso te ajuda ao trabalho”, disse.
Waddington revelou que Fernando Vendrell encontrou ainda vários documentos, como cartas escritas por Gago Coutinho, que “sugerem traços de personalidade interessantes”. No entanto, a principal matéria-prima foi mesmo o guião final. “Nós temos que criar uma coisa que por vezes é fictícia, mas as pessoas têm de acreditar que nós somos estas pessoas e a minha grande fonte a uma dada altura são mesmo os guiões. Eu tenho de criar a partir deste imaginário, como se fossem umas criaturas mitológicas”.
Os dois protagonistas falaram aos jornalistas em Novembro passado, um mês antes da conclusão da rodagem, e ainda vestidos à civil. A seguir, tiveram de se preparar para uma cena que simulava uma noite no extinto Bristol Club, que funcionou durante uma década na Rua Jardim do Regedor, próximo dos Restauradores. Uma cena em que, avançou Damião, “há uma viagem de avião do personagem do Froes que vai atravessar Lisboa e nós vamos ficar lá fora para ver um voo noturno que ele fez antes do nosso”. O actor referia-se a Francisco Froes, actor que interpreta o aviador Sarmento Beires, um dos rivais de Sacadura Cabral na corrida ao Brasil. “Por acaso não foi o primeiro, porque houve ali um azar. Na altura, estávamos a concorrer com os EUA, a França, países com muito mais dinheiro do que nós, nestas travessias. Não fizemos a travessia do Atlântico Norte primeiro, fizemos a do Sul e o Sarmento Beires fez a nocturna e antes disso ainda foi a Macau”, explicou Froes, numa entrevista entre cenas. Curiosamente, Froes descobriu que um dos seus amigos é bisneto do irmão do Sarmento Beires, que o colocou em contacto com a família, o que acabou por contribuir para a construção do personagem. O actor português está também a apostar numa carreira atrás das câmaras e a dar os últimos retoques numa curta-metragem, que escreveu e realizou, protagonizada por Sara Sampaio e Rafael Morais.
A Travessia dá ainda espaço a outros personagens relevantes de então, como os aviadores Ortins de Bettencourt (Rafael Gomes) e Brito Pais (Jaime Freitas), que também competiam por um lugar na história que imortalizou Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Ou os jornalistas Norberto Lopes (Vicente Wallenstein) e Tomás Ribeiro Colaço (Tiago Costa) que fazem um triângulo de influências com Tibita (Júlia Palha), personagem oriunda de uma família endinheirada que acaba por desbloquear o acesso ao Bristol. Também presente neste dia de rodagem, José Fragoso, director da RTP1, descreveu como “estimulante” a aposta num projecto com esta dimensão, “focado num acontecimento muito importante para a história dos portugueses”, garantindo que estará no ar na segunda metade de 2024. “E vai registar para futuro o que foi um grande feito da aeronáutica nacional e do desafio que constituía esta travessia, que teve muitas peripécias, com situações que obrigaram a que fosse feito um investimento em termos de aviões”, recorda. É que nesta travessia, que se prolongou por quase 80 dias, foram utilizados três hidroaviões, resultado de algumas avarias pelo caminho: o Lusitânia, o Pátria e o Santa Cruz. Este último faz parte da colecção do Museu de Marinha, em Lisboa, onde pode ser visto ao vivo e a cores. Já o Lusitânia está representado no Monumento a Gago Coutinho e a Sacadura Cabral, no Jardim da Torre de Belém.
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