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Serralharia onde trabalhou Saramago em risco, mas arqueólogos resgataram o que resta

Não há decisão sobre futuro dos equipamentos e edifício do Hospital de São José. Única preservação é a da memória.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
Jornalista
Antiga serralharia do Hospital de São José
Arlei LimaAntiga serralharia do Hospital de São José
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Não foi preciso muito mais do que uma semana de trabalho para inventariar, fotografar, analisar e medir ferramentas como uma fresadora, um torno, um berbequim e uma prensa, bem como o sistema de transmissão de energia que regava a antiga serralharia do Hospital de São José, fechada há mais de um ano, não para obras, mas por questões de segurança, já que o edifício se encontra num “estado periclitante”, em risco de ruir. Quem o conta é um grupo de três arqueólogos que, precisamente devido ao risco de colapso, foi chamado a intervir e a registar a memória da infra-estrutura pelo próprio Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHLC). São eles Carlos Boavida, do Gabinete do Património Cultural do CHLC; João Sequeira, investigador da Universidade do Minho; e Afonso Leão, investigador da Universidade Nova de Lisboa, que apresentaram no final do ano passado o artigo “Memorial da Serralharia: Arqueologia do Passado Recente no Hospital de São José”, no IV Congresso da Associação dos Arqueólogos Portugueses.

A palavra memorial não foi escolhida ao acaso, já que nesta infra-estrutura, possivelmente erguida na década de 1930, trabalhou José Saramago. E talvez seja este o principal motivo para que alguém ainda queira olhar para ela. Do ponto de vista arquitectónico, o edifício não tem propriamente interesse, nota Carlos Boavida. Grande parte da maquinaria caiu em desuso e está em mau estado de conservação e a memória industrial nem sempre é o ponto forte das empreitadas de conservação. Contudo, a passagem do Nobel da Literatura por esta serralharia (que o próprio, aliás, refere na sua obra, embora designando-a de oficina de automóveis, não estando a hipótese de ali ter existido esta valência completamente descartada) foi curta: aconteceu entre Novembro de 1941, tinha ele 19 anos, e Março de 1942. Foi contratado como aprendiz de serralheiro (ofício para o qual estudou) e, mais tarde, passou a fogueiro, ficando responsável pela caldeira. Consta, porém, que não gostava muito da barulheira infernal do espaço, pelo que rapidamente arranjou maneira de dali sair. “Como escrevia muito bem, chamaram-no para trabalhar no secretariado do hospital”, conta o arqueólogo Carlos Boavida. Mas, tornando ao ponto-chave, a dúvida impõe-se: se Saramago não tivesse por cá passado, ainda que por pouco tempo, alguém olharia para a serralharia do São José como património? Provavelmente, não.

Os arqueólogos João Sequeira, Carlos Boavida e Afonso Leão
Arlei LimaOs arqueólogos João Sequeira, Carlos Boavida e Afonso Leão

Em Dezembro de 2021, o grupo de arqueólogos juntou-se para documentar o edifício e os equipamentos, confrontou testemunhos orais com informações de arquivo e pôde, assim, resgatar a memória desta oficina desactivada que o São José criou sob as ordens de Curry Cabral, com o fim de limpar as contas do hospital. “Este trabalho de arqueologia, de confrontar a memória”, como lhe chama João Sequeira, foi um dos principais resultados da pesquisa. É um trabalho que nunca tinha sido feito, como acontece em muito do património industrial português, dada a subjectividade quanto ao que tem interesse ou não preservar, discutem os profissionais. No entanto, banais ou não, oficinas deste género vão desaparecendo e acabamos por ficar sem esse registo, analisa João Sequeira, que prossegue: Daqui a alguns anos, provavelmente, diriam que esta serralharia nunca existiu.” Também Afonso Leão refere que são poucos os sítios contemporâneos registados em Lisboa, alegando a importância de preservar a memória do passado recente, através desta arqueologia contemporânea.

No caso da serralharia do São José, o trabalho destes investigadores permitiu, acreditam, dar voz a uma situação que, se não for registada, é silenciada, bem como colmatar hiatos da História, nas palavras de João Sequeira. Embora seja desconhecido o futuro reservado à oficina e aos equipamentos que a compõem (o CHLC ainda não tomou uma decisão sobre o tema), a probabilidade da sua demolição e da não preservação das ferramentas é forte. Apenas um torno, eléctrico e em condições de usabilidade, tem boas hipóteses de continuar em acção, noutras instalações do centro hospitalar. 

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