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A mesa rectangular, com lugar para 14 pessoas, continua a estar no centro da sala. Também lá permanece um quadro a óleo, livros, peças em cerâmica e focos de luz. Tudo simples, requintado, bonito. Estamos de volta ao Ceia – o restaurante intimista no interior do Santa Clara 1728, um pequeno hotel apalaçado, na Graça –, que reabriu em Maio, quase três anos depois de ter encerrado com a saída de Pedro Pena Bastos, quando se mudou para o Cura, onde viria a conquistar uma estrela Michelin.
Quem nos recebe agora é o novo chef, Diogo Caetano. A sua descontracção e simpatia faz antever o ambiente do jantar prestes a começar: divertido e descontraído, ainda que sofisticado. À mesa do Ceia, o chef de Mira de Aire, com um currículo feito na alta-cozinha, leva-nos numa viagem gastronómica pelas várias paisagens do país, do fundo do mar à floresta, num menu de degustação de vários momentos, que aposta na sazonalidade e nos produtos locais.
De outros tempos, garante, só resta a vontade de juntar estranhos à mesa para um repasto de mais de quatro horas. “Este conceito novo vai muito além de uma experiência comunitária de 14 pessoas, estamos a envolver muito mais o Silent Living”, explica, referindo-se ao projecto familiar que contempla várias casas espalhadas pelo país, entre as quais este Santa Clara 1728 e a Herdade do Tempo, em Montemor-o-Novo, que abastece o restaurante. “Na Herdade do Tempo, temos uma horta que está a ser desenvolvida através do método holístico de agricultura regenerativa, com proteína, vegetais, tudo o que se possa imaginar. Este projecto vai englobar também a produção de farinhas, mel e enchidos. Eu gostava muito que, até ao fim do ano, 90% do que servimos à mesa venha daqui.”
Apesar de suceder ao estrelado Pedro Pena Bastos, Diogo Caetano diz não sentir a pressão dos galardões. Isto porque foi ainda no Ceia que Pena Bastos virou os holofotes para si. Na altura, o crítico Alfredo Lacerda não teve dúvidas de que foi aqui que teve a melhor refeição de fine dining em 2019. O chef actual não se deixa intimidar: “A mim o que me move é que as pessoas gostem, saiam daqui felizes e que façam amigos. Queremos que as coisas saiam bem feitas e que as pessoas sintam esta partilha e esta comunhão. O resto virá por acréscimo. Tudo o que tiver de vir, nós abraçamos com o maior carinho”, afiança. Família, casa e simplicidade são, assim, as palavras usadas por este chef para definir a filosofia do Ceia.
Com a mesa comunitária, o restaurante pode forçar o momento de partilha entre pessoas que não se conhecem, mas Diogo Caetano assegura que esse não tem sido um entrave. “Até agora temos tido agradáveis surpresas. As pessoas têm vontade de conviver. Temos estado sempre cheios”, conta. “Nunca comes ao teu ritmo, comes ao ritmo da mesa, o que é uma coisa engraçada. Nós queremos muito que as pessoas partilhem a mesa e que troquem ideias. O jantar vai acabar por demorar muito mais tempo, as pessoas estão mais alinhadas”, acrescenta.
Este convívio é incentivado mesmo antes do jantar, num momento reservado para um copo de vinho no jardim interior do hotel, cuidadosamente seleccionado pelo escanção Ivo Custódio, que acompanha os comensais o resto da noite, com um pairing de vinhos portugueses ou de sumos. Na noite em que visitámos o Ceia, partilhámos mesa com um casal norte-americano, de São Francisco; duas cantoras de Los Angeles; mãe, pai e filho canadianos; e ainda um casal português. “O turismo cresceu muito. Acabamos por ter sempre um público estrangeiro, mas também pessoas portuguesas. Esta mistura é gira”, conta o chef.
Para arrancar o jantar, mergulhamos ao fundo do oceano com uma tríade a saber a mar, e ingredientes como algas, atum e lula. “Beautiful”, “o começo que precisávamos”, ouve-se pela mesa. Já o segundo momento é inspirado na costa portuguesa: ostras, maçã de Alcobaça, gelado de codium (uma alga); seguindo-se um pregado grelhado, ervas e coentros.
Chegados à planície, somos surpreendidos com uma selecção de pão caseiro, fermentado durante três dias; azeite e manteiga – um momento de transição para o prato de carne, um coelho com gelado de escabeche. Adiante, subimos a montanha e somos convidados para a cozinha. “Agora vão empratar”, diz-nos, criando rebuliço à mesa e deixando cair qualquer regra. O prato vegan acaba por ser finalizado por si: uma couve com óleo de menta e champagne. Ainda na montanha, passamos para o pombo com batata e trufa – um prato que ofereceu alguma resistência aos portugueses na mesa, mas que não afectou os restantes, que lhe teceram vários elogios. Terminamos na floresta, com três sobremesas, uma das quais – o parfait de pêssego, sal preto, e molho de baunilha – uma surpresa além do menu revelado. “Muitas das coisas vêm da Herdade do Tempo e, por isso, muitos pratos vão mudando ou vão variando consoante o que recebemos desta quinta”, clarifica.
Diogo Caetano não acaba a noite sem uma onda de louvor, que se estende ao sommelier Ivo Custódio e à restante equipa. Depois das medidas apertadas na restauração, que impediram uma reabertura no início de 2020, talvez o Ceia reapareça no momento certo.
Diogo Caetano, o chef que leva sustentabilidade para a mesa do Ceia
Natural de Mira de Aire, Diogo Caetano, de 34 anos, é um apaixonado pela comida “desde puto”. “Digo sempre que não há cozinheiros que não tenham avós que não cozinhem bem.” Apesar disso, só se dedicou profissionalmente à cozinha bem mais tarde. Primeiro, formou-se em Ciências da Nutrição, chegando mesmo a trabalhar na área. “Aqui a minha conexão com os alimentos era mais científica. Chegou a uma altura na minha vida em que eu achei que esta parte prática fazia mais sentido e decidi enveredar pela cozinha”, conta.
Seguiu-se a formação na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. "Quis tentar absorver o máximo no menor espaço de tempo possível, principalmente porque há muita malta nova que começa muito cedo. Eu comecei mais tarde, portanto tinha que tentar fazer as coisas bem e rapidamente”, lembra. Na vizinha Espanha trabalhou no restaurante homónimo de Martín Berasategui, com três estrelas Michelin, em Lasarte-Oria, nos arredores de San Sebastián, mas também no duas estrelas Atrio, em Cáceres, de Toño Perez. Por cá, esteve no Belcanto, de José Avillez; e no Feitoria, quando João Rodrigues estava na cozinha. “Queria muito trabalhar com o João Rodrigues, é uma pessoa que eu admiro imenso. Quis muito aprender com ele, e acabei por trabalhar lá dois anos”, revela. Foi então que chegou o convite para viajar até à Estónia para ser chef executivo do grupo Pädaste Manor, onde liderou o restaurante de fine dining farm-to-table Alexander, dedicado à cozinha nórdica.
Regressou a Portugal este ano, já depois de ter conseguido pôr o Alexander entre os três melhores restaurantes da Estónia, segundo o White Guide, um reconhecido guia gastronómico para os países do Norte da Europa.
“Sentia falta do sol de Portugal, tinha muitas saudades da família, de tudo, e decidi que estava na hora de voltar para casa.” Agora é chef no Ceia, onde prepara pratos elaborados, com uma vertente sustentável. Apesar de ser na alta-cozinha que dá cartas, é ao “pão, queijo e fiambre” que não resiste. Não há nada que não coma.
Campo de Santa Clara, 128 (Graça). Qua-Sáb 20.00. 100€ o menu, 150€ com harmonização de vinhos, 130€ com harmonização de sumos.
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