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Ainda não o começara a escrever e já o seu novo livro estava a ser escrito. Talvez pareça um paradoxo, mas nós esclarecemos. Quando a realizadora Marta Pessoa a convidou para fazer parte do que viria a ser Um Nome Para o Que Sou, documentário sobre a vida e obra de Maria Lamas, Susana Moreira Marques não hesitou em fazer-se à estrada. Consigo levou cadernos, uma menina ainda por nascer (estava grávida da segunda filha, agora com cinco anos) e uma vontade de desfiar também as memórias da sua família, em particular das mulheres da sua família. “Quando cheguei ao fim da viagem, o que aconteceu foi que, depois de ter gravado a voz off do filme [que se estreou em 2022], percebi que o texto tinha uma vida própria e havia muito material ainda, que tinha escrito ou pensado e não tinha entrado, e decidi que precisava de continuar a escrever”, revela a escritora e jornalista.
Guiada por As Mulheres do Meu País, escrito no final dos anos 1940 por Maria Lamas, feminista de proa no Portugal do seu tempo, Susana foi em busca de uma herança esquecida e acabou a compor um retrato de quem somos agora. Parte ensaio sobre os textos que as mulheres de antigamente não escreveram e que poderiam ter mudado a visão da História, parte narrativa autobiográfica de uma escritora que tenta desvendar a sua própria história nas histórias das mulheres anónimas que povoam o nosso imaginário, Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro tem lançamento previsto para 17 de Abril. Trata-se do título inaugural da nova colecção de não-ficção literária da Companhia das Letras, focada em vozes literárias “de excelência” em língua portuguesa, num género que tem vindo a conquistar um lugar cada vez mais proeminente na literatura mundial.
“Sempre quis fazer um texto [para o filme] que fosse relativamente literário, não no sentido pomposo, mas no de ter um formato e estilo que não é necessariamente aquele que ouves num documentário. Pensei ‘se fosse para ser tradicional, não precisavam de mim’, por isso se era este trabalho que estávamos a fazer, de colaboração, era interessante que fosse mais arriscado. Mas nunca imaginei que viesse a ser um livro, pelo menos não desta forma”, conta-nos, por entre risos, antes de confessar que o processo demorou mais do que o previsto. “O filme estreou em Abril [de 2022] e, em Maio, eu fui fazer uma residência nos Estados Unidos, o que foi uma oportunidade óptima, estar três semanas só a escrever. Na minha cabeça, terminava [o livro] num mês, mas claro, não foi nada assim, demorou um ano.”
Acolhendo uma grande diversidade de abordagens, incluindo formatos híbridos, a não-ficção literária – na qual Susana se estreou com Agora e na hora da nossa morte, um livro sobre o luto já traduzido para inglês, francês e espanhol – parte da realidade para criar novas formas e linguagens que aprofundam a relação do leitor com o mundo. “[No meu novo livro] há uma comparação entre a época em que Maria Lamas escreveu e a nossa época, não só relativamente à vida das mulheres, mas também em relação à própria escrita e à ideia de fazer um trabalho documental, porque tudo isso mudou muitíssimo. Ela acredita que documentar a vida daquelas mulheres é um objectivo em si, para criar conhecimento que de outra forma não existiria e para ter um efeito prático, e há uma certa inocência nisso que é difícil termos hoje, no mundo em que vivemos, com a quantidade de histórias que circulam. Essa inocência de que trazemos estes testemunhos e que eles podem fazer a diferença. Por isso, em vez de fazer perguntas, pergunto que perguntas vale a pena fazer.”
Viajando pelas aldeias ruidosas do passado e as aldeias-museu do presente, confrontando-se com o progresso de já ter um quarto só para si (como Virginia Woolf preconizou ser essencial para que uma mulher possa ser criativa), Susana reflecte sobre o legado das mulheres que nunca chegou a conhecer, a vida das mulheres que foi encontrando pelo caminho e aquilo que lhe diz directamente respeito, como mulher que escreve e ganha o seu próprio dinheiro, que não é casada mas tem filhas, que partilha a vida com alguém mas não precisa de autorização para fazer o que lhe apetece. Ao descobrirmos de onde viemos, talvez descubramos para onde vamos, sugere. “Se vires imagens daquele tempo, as mulheres nunca estão de mãos vazias, têm sempre as mãos ocupadas, muitas vezes com trabalhos pesados. Isso sempre foi uma coisa da qual, a partir de certa altura, tive extrema consciência: do privilégio de não saber fazer nada – basicamente não sei fazer nada, não sei costurar [e outras coisas supostamente úteis] – e de ter uma certa ociosidade que é produtiva para outras coisas, como ler, escrever, pensar, imaginar, ter uma vida interior muito rica e desenvolvida.”
Como uma espécie de herança para a sua filha e para todas as mulheres à procura da sua genealogia, Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro questiona-nos – porventura mais do que nos fala – sobre a importância da memória para a construção da nossa identidade, individual e colectiva. “Se a minha avó tivesse escrito, que teria ela escrito? Isso ressoa em mim, essa história que não só não está contada como não está contada por ela. Quem conta a história importa, porque quem conta muda a história. Os factos podem ser os mesmos, mas a história é diferente”, alerta, evocando esse receio latente de que não é possível ser-se objectivo, que há sempre coisas fora do quadro, que o que não se regista é lição que se perde. “Quando eu digo de onde venho, não quero dizer deste território com esta paisagem. É destas mulheres com maridos que emigraram, que ficaram sozinhas com os seus bebés. Destas histórias de extrema dureza e coragem, mas também de superação. E é, para mim, quase como se tivéssemos ainda de fazer esse trabalho, de reunirmos estas nossas narrativas fundadoras, para as coisas que vêm a seguir.”
Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro. De Susana Moreira Marques. Companhia das Letras. 128 pp. 15,45€ (lançamento a 17 Abr)
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