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O portão está fechado. Há que aguardar “uns minutos”, “poucos”, diz Henrique Antunes, do Teatro do Vestido, enquanto “eles” preparam “umas coisas”. Que coisas são essas e como se organizam lá dentro não sabemos ao certo. A expectativa era encontrar caixas de onde pudessem emergir recortes de jornais, fotografias, discos, livros, tudo relacionado com essa memória colectiva que nem todos viveram mas que vive em quase todos, dos anos da ditadura militar ao pós-Revolução.
O que se passa lá dentro, na garagem que também é lugar de ensaios, é a recriação de um museu, o mesmo que a companhia quer ver instalado em Marvila e que vive a partir do seu arquivo, em construção desde 2011. Surgem, então, diferentes estações, luzes baixas e canções a acompanhar, do Movimento Nacional Feminino a Fernando Tordo, com as devidas imperfeições do vinil e dos tempos. Entremos.
A casa de partida é 1926, início da ditadura militar. Neste museu hipotético em que as equações expositivas e performáticas são “quase infinitas” começa-se pelo altar Oliveira Salazar, pejado a retratos da figura de proa da ditadura. O nariz longo, as sobrancelhas pesadas e os cabelos alinhados ao milímetro servem de enquadramento ao que aí vem, da grande biblioteca feita de livros e jornais proibidos à propaganda — o último Avante! clandestino, edições da SNI ou exemplares do Notícias de Portugal, que a companhia de teatro encontrou em grande número num alfarrabista em Belo Horizonte, Brasil, ocupam a cada momento o seu lugar.
“Temos aqui um livro da Primeira Classe, da altura, que não tem a imagem que hoje se vê nos livros à venda nos CTT, porque ela é bastante fascizante, como se vê”, orienta Joana Craveiro, directora do Teatro do Vestido. Na secretária também está pousado um caderno de redacções, doação. Mais à frente, um saco tricotado por um preso político na cadeia do Aljube, para a sua irmã, doação. Há colecções sobre a PIDE, livros sobre o fascismo em Portugal escritos com a liberdade de estrangeiros. Acende-se uma luz e avançamos para outra estação: a da casa clandestina, “homenagem às pessoas que arriscavam as suas vidas na resistência”, com recurso a meios criativos como um manual de esperanto, que ali está e “foi uma língua bastante utilizada, por exemplo, entre os operários do Barreiro”. Não se esquece o papel, duro e específico, da mulher, detalhado nos trabalhos de Cristina Nogueira (Vidas na Clandestinidade) ou Ana Barradas (As Clandestinas).
Apaga-se a luz, muda-se o disco. Na “estação parlatório”, Carlos Marighella, com base no texto de Álvaro Cunhal, aconselha sobre o que fazer a quem sair a sorte da prisão, em Se fores preso, camarada…. Lêem-se os panfletos que contavam prisões e torturas, metidos há décadas e em silêncio nas caixas de correio.
Mas também se ultrapassa a cárcere, chegando à lista de livros que o regime proibiu, publicada em Junho de 1974, ou ao livro de entrevistas Portugal sem Salazar, de Mário Mesquita. Da paisagem documental emerge ainda uma miniatura de uma carrinha da Gulbenkian, serviço que funcionou de 1958 a 2002 como plataforma móvel de acesso à educação e à cultura. Tudo isto enquanto ouvimos “Natal 71”, o disco com anedotas e canções gravado pelo Movimento Nacional Feminino que os soldados portugueses receberam em África como grande prenda do regime, “para ouvir no meio do mato”. Tê-lo-á ouvido Carlos N., antigo capitão, que doou ao Teatro do Vestido aerogramas, balas de G3 e fotografias? Ou os que morreram no massacre de Wiriamu, de 1972, em Moçambique, aqui lembrados e sobre o qual o Governo português pediu pela primeira vez desculpa em 2022?
Um museu comunitário
O arquivo pode resultar em exposições “quase infinitas”, já o disse Joana Craveiro, porque há mais, e continua a aparecer. Existem cadernos de notas, panfletos que ensinam a votar, autocolantes, jogos de tabuleiro pós-Revolução onde o peão pode ser mandado para Caxias por ser pouco contestatário. Coisas oferecidas, encontradas, compradas pela internet ou em alfarrabistas. “Muitas pessoas dão-nos estes objectos porque acham que eles poderão ter mais valor aqui, connosco, do que guardados em casa numa caixa”, explica Tânia Guerreiro, da companhia.
Muitos dos objectos entram em cena, nas diferentes peças ou performances do Teatro do Vestido. Uma boa parte já esteve em exposição, no ano passado, numa ocupação integral da Biblioteca de Marvila, “Revolution Junkies - Estrangeiros na Revolução Portuguesa”.
Para lá do palpável, que são “milhares de objectos” que a própria associação cultural não consegue precisar, o Teatro do Vestido recolheu, desde 2011, mais de 100 entrevistas áudio, testemunhos da vida no Estado Novo, no dia 25 de Abril e no pós-Revolução, até porque a história está em grande parte fora do oficial. “Somos pessoas da história oral”, justifica Joana Craveiro.
Com todo este espólio que “no dia-a-dia está arrumado em caixas”, o Teatro do Vestido quer criar um “museu vivo de memórias pequenas e esquecidas”. Não é por acaso. O seu trabalho tem sido à volta da memória, dos territórios e das comunidades e este (o "museu vivo...") é o nome da sua peça-monumento (com cerca de cinco horas), que resulta de um longo trabalho de pesquisa e tem sido apresentada em diferentes pontos do país e no estrangeiro. O museu seria vivo por perspectivar-se numa visão comunitária, explica a directora. “A ideia é que [as pessoas] possam ajudar a organizar exposições, dialogar connosco nas visitas, intervir em diferentes acções”, explica Joana Craveiro.
Nesse trabalho com a população de Marvila (extensível a outras comunidades), com a qual o Teatro do Vestido colabora há vários anos, através do grupo 4 Crescente, o país ganharia também uma estrutura independente centrada na política pública da memória, “bastante pobre” a nível público, na visão da directora.
Sete anos de azar
Havendo acervo e interesse público, por que não avança este projecto de museu comunitário? Falta de verbas? De espaço? Em 2017, foi assinado um protocolo de cedência de um espaço municipal, perto da Biblioteca Municipal de Marvila, para a instalação deste museu vivo. “Tudo começou com uma conversa com o [então] director municipal da Cultura, Manuel Veiga, em que lhe expus a ideia. Ele perguntou se o espaço poderia ser uma loja e dissemos logo que sim”, conta Joana Craveiro. Chegaram a estar em cima da mesa três lojas, todas em Marvila, até que a última soou a decisão final. “Estão devolutas e fechadas”, frisa a directora da companhia.
Soma-se o facto de o Teatro do Vestido contar com o apoio financeiro da Direção-Geral das Artes para o projecto do arquivo. Para criar o museu, recebeu, ainda, aconselhamento científico e tem um projecto de arquitectura feito, com posto de escuta incluído, onde quem quiser poderá intercalar o “Fado do Alcoentre” (música de Fernando Tordo e letra de Ary dos Santos) com entrevistas a sobreviventes do antigo regime. A associação chegou, inclusive, a captar financiamento para realizar obras e adquirir mobiliário para as futuras instalações do museu. “Convocámos uma rede de parceiros para pensar na organização, catalogação, inventariação e nas actividades do museu. Quanto a nós, este é um projecto sério e consequente”, afirma Joana Craveiro. Mas não sai do papel. “Sabemos que há muitas pessoas na Câmara empenhadas em que este projecto avance, mas os obstáculos que encontram, indefinidos, não o permitem.”
Todos os anos, desde 2017, o Teatro do Vestido tem pelo menos uma conversa com a CML no sentido de perceber quando poderá o museu ganhar vida. A última foi “há um mês”, sem uma resposta conclusiva. A Time Out questionou a autarquia sobre o assunto, mas ainda não obteve resposta.
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