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Telma Tvon: “Ser imigrante não é ser criminoso, ser preto não é ser assaltante”

‘Um Preto Muito Português’ está de regresso às livrarias, numa nova edição, sete anos depois da original. Telma Tvon diz-nos o que mudou entretanto na vida de Budjurra.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Retrato de Telma Tvon
© Arlei Lima/ Time Out LisboaTelma Tvon, autora de ‘Um Preto Muito Português’
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Era para ter sido uma canção. Telma Tvon, que em tempos pertenceu a grupos de hip-hop no feminino, era então uma MC a solo e sonhou cantar o Portugal negro ao lado de nomes como Lancelote e Chullage. Nunca se atreveu a convidá-los, mas o que tinha para dizer era grande demais para caber num só rap. E, quase sem dar por isso, fez nascer Um Preto Muito Português pela voz de Budjurra. Lisboeta a viver nos subúrbios, filho e neto de cabo-verdianos, bisneto de africanas e holandeses, Budjurra, baptizado João, sente-se de Cá, mas é visto como de Lá, e as suas vivências reflectem as de muitos outros jovens das comunidades imigrantes e afro-descendentes. Publicado inicialmente em 2017 pela Chiado Editora, o romance de estreia de Tvon – que é a história de Budjurra, que é a história de muitos outros negros em Portugal – está de regresso às livrarias, numa nova edição pela Quetzal.

“O João é uma mescla de várias pessoas que conheço, com quem cresci, com quem privo. Apesar de ser afrodescendente, nasceu em Portugal. É um preto muito português, como diz o título. Quando o criei, foi a pensar em todos os meus amigos, pretos e portugueses, que estão cansados que lhes perguntem a toda a hora de onde são”, diz a autora, com quem nos encontramos no Café Bertrand, no Chiado. “É muito complicado, com 12, 13, 14 anos, teres de explicar aos outros quem és, quando muitas vezes ainda nem tu sabes muito bem quem és. Principalmente, quando sentes que te querem negar uma parte de ti. Porque quando te perguntam de onde és e tu respondes ‘da Amadora, ou de Monte Abraão’, e a seguir te questionam ‘não, não, mas os teus pais?’, é como se a tua resposta não fosse válida, como se não pudesses ser daqui.”

Telma Tvon nasceu em Luanda, em 1980, e só veio para Lisboa aos 14 anos, para fugir da guerra civil. Apesar de já ter mais anos de vida em Portugal do que em Angola, sempre se sentiu muito angolana. Mas não é assim para Budjurra, que denuncia logo no primeiro capítulo, “Quem sou eu”, o preconceito de quem parte do princípio de que um negro não pode ser português. Porque ele nasceu em Lisboa, mesmo sendo tido por estrangeiro, e nunca esteve em África, apesar de todas as vezes que o mandaram voltar para a terra dele. “Procurei imaginar o que seria se eu quisesse reclamar a minha portugalidade, se abrisse a boca para dizer ‘sou uma angolana muito portuguesa’. O ‘vai para a tua terra’ é transversal, também já ouvi. Uma vez passei-me e disse a uma senhora ‘se está chateada, é com o Diogo Cão, não é comigo, porque eles é que foram para lá e por isso é que eu estou aqui.”

Telma Tvon
© Arlei Lima/ Time Out LisboaTelma Tvon, autora de ‘Um Preto Muito Português’

O que é ser negro e estar vivo agora?

Como é que se lida com a invisibilidade, como é que se sobrevive à discriminação e, porque também importa (se calhar até mais do que tudo o resto), como é que se vive e se sente fora do olhar dos outros. São as questões que Tvon considera em Um Preto Muito Português. Budjurra não representa todas as comunidades africanas e afrodescendentes – “não somos um organismo único”, diz, farta que tomem a parte pelo todo –, mas a sua história e as histórias que nos conta, sempre na primeira pessoa, são uma espécie de janela para tantas dessas realidades. Da pergunta cliché da origem até à forma como o racismo sistémico se traduz em várias desigualdades, a autora procura dar voz às pessoas racializadas num país como o nosso, que confunde cor de pele com naturalidade e continua a ter uma relação difícil com a diferença.

Licenciada em Estudos Africanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e mestre em Serviço Social pelo ISCTE, Tvon lembra-se de estar sempre a pensar como se fala tanto de colonialismo e escravatura e tão pouco do que significa fazer parte da diáspora negra e estar vivo agora. Em Portugal, por exemplo, uma das nacionalidades com mais imigrantes em Portugal é a cabo-verdiana. “Não creio ter usado casos específicos, mas inspirei-me muito nos meus amigos e em muitos perfis de miúdos com os quais me vou cruzando. Por exemplo, no livro falo da luta pela nacionalidade, inclusive de pessoas já cá nascidas, porque é preciso trabalhar para ter documentos e é preciso ter documentos para se trabalhar. Depois também tens de pagar, claro. Mas, se não estás a trabalhar porque não tens documentação, como é que pagas? E quando te dizem ‘vai para a tua terra’, perguntas ‘qual terra?’, porque nunca saíste daqui.”

Com o romance dividido por capítulos, sem seguir nenhuma cronologia em particular, Tvon confessa ter escrito de improviso, ao sabor dos temas que lhe interessavam explorar, do racismo ao privilégio de classe. “Um bocado como no rap, muito freestyle”, que de resto também surge como inspiração para os próprios personagens, que encontram na cultura hip-hop um veículo de identidade e contra-narrativa. Por outro lado, o género de Budjurra foi uma escolha muito consciente. “A maior parte das pessoas acha que os homens africanos são uns brutamontes e eu queria desconstruir isso, expôr um homem com uma personalidade mais sensível, capaz de falar dos seus sentimentos, porque tenho muitos amigos como o Budjurra que desabafam comigo, mas não falam dentro do seu grupo”, desvenda, abrindo a porta para outro problema que a aflige: os preconceitos que existem dentro da sua própria comunidade.

Telma Tvon
© Arlei Lima/ Time Out LisboaTelma Tvon, autora de ‘Um Preto Muito Português’

Xê Budjurra não fala disso

“Às vezes estamos tão ocupados a tentar provar que o racismo ainda existe, a tentar lutar contra a extrema-direita, que não falamos uns com os outros. Gostava muito que os nossos aliados brancos fizessem esse trabalho por nós para que pudéssemos ter espaço e tempo para nos concentrarmos noutros problemas que não criámos, mas dos quais padecemos, como o colorismo [que estimula uma espécie de competição entre negros de pele clara e negros de pele escura]. É que, em vez de nos sentarmos a resolver isso, temos de ir para a rua tentar provar que ser imigrante não é ser criminoso, ser preto não é ser assaltante”, lamenta. “Depois, quando aparecem 75 mil euros numa gaveta de um armário não sei onde, em vez de discutirmos isso, estamos a pôr em causa os que até estão a contribuir para elevar a Segurança Social do país.”

Tvon acredita que as comunidades africanas são muito fortes e resilientes. Mas, passados sete anos da publicação original de Um Preto Muito Português, a autora também está convencida de que muito pouco mudou e explica-nos que as pessoas negras que dizem que não há racismo estão só a proteger-se a si mesmas. Tal como o Budjurra faz quando desvaloriza as dificuldades que tem em encontrar emprego – porque não é só ele, também há brancos que não arranjam –, sem entender a influência e o impacto da falta de equidade e justiça social. “Tendo em conta as coisas que vão acontecendo, o que aconteceu com a Cláudia Simões, o que acontece com outras pessoas negras e outros imigrantes em Portugal, era expectável que houvesse mais debate. Quando há uma tragédia, qualquer coisa que parece que vai desencadear uma espécie de motim, fala-se sempre. E depois esquece-se tudo outra vez. Não sei se estou a ser pessimista, mas não está nada a acontecer como nós gostávamos que acontecesse.”

Um Preto Muito Português, de Telma Tvon. Quetzal. 184 pp. 16,60€

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