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Este é o primeiro solo de Teresa Coutinho. Um solo mais ou menos acompanhado, um solo em que a solidão tem muitos tentáculos, pontos de tensão e memórias conflituosas; aquele lugar ao qual a actriz, criadora e dramaturga “teve de voltar”, mas onde já não quer estar. Depois de ter sido adiado devido à covid-19, o espectáculo sobe finalmente ao palco do Teatro do Bairro Alto, de quinta-feira a sábado, passando depois pelo Teatro Campo Alegre, no Porto, nos dias 4, 5 e 9 de Fevereiro.
Solo cruza a autobiografia de Teresa Coutinho com terrenos de pesquisa centrados na construção de uma ideia padronizada de mulher, veiculada tanto pelo cinema como pelo teatro – e como o desmantelamento dessas molduras sócio-culturais é um trabalho in continuum de dentro para fora, de fora para dentro.
Porquê um solo e porquê este solo?
É o significado da palavra e a ideia de estar a sós na vida que têm uma real importância no que são as premissas do espectáculo e no que o texto se tornou, mais do que este ser um espectáculo em que eu estou sozinha em palco. Não estou: tenho duas colaboradoras, duas mulheres a filmar em tempo real e que, necessariamente, também são intérpretes. Se calhar essa não deixa de ser uma forma de eu fugir à tal solidão. Precisei de falar da solidão que enfrentamos e, por mais que me pareça necessário confrontá-la na primeira pessoa, dou por mim a tentar fugir dela em cena. Acho que estou sempre a tentar fugir dela. Talvez porque me pareça que não há maior solidão do que a de uma vida que se vive em segredo, de estar só com aquilo que se é, como eu vivi.
Por onde passou o teu trabalho de pesquisa e de que modo(s) é que o cruzas com a tua biografia?
Este trabalho parte de um encontro com um texto da Laura Mulvey, Visual Pleasure and Narrative Cinema, acerca do olhar masculino sobre a mulher no cinema, o dito male gaze, e da maneira como estas mulheres foram filmadas, como as suas personagens foram construídas, como se construiu uma ideia de “feminino”. Ainda estava muito influenciada também pelo meu encontro com John Berger e o seu incrível trabalho acerca do aparecimento da câmara, e como esse momento de viragem mudou, para sempre, a relação entre aquele que vê e a obra a ser vista. Estas referências levaram-me a pensar num espectáculo em que pudesse reflectir sobre a imagem de Mulher que me foi transmitida ao longo da infância, adolescência e idade adulta, tanto como ávida espectadora de cinema e teatro como, mais tarde, enquanto estudante de interpretação e actriz.
Inicialmente, pensava neste espectáculo mais como uma espécie de exposição/conferência, em que protegia esses lugares fracturantes da minha biografia. Fui percebendo que era impossível. Parecia-me desonesto não falar na primeira pessoa, nas coisas que sei, que me foram ditas, que ouvi, que vi e que moldaram formas de estar, obrigaram a silêncios, determinaram comportamentos que, ainda hoje, estão enraizados no meu modo de ser, por mais que os tente combater. O que me surpreendeu, à medida que fui mergulhando no texto e cruzando a pesquisa e a autobiografia, foi dar-me conta de que havia ainda lugares por resolver que eu julgava apaziguados. Momentos que ainda hoje me custam, associados à assunção da minha homossexualidade, por exemplo. Houve momentos em que me apeteceu voltar atrás, encontrar aquela rapariga de 15 anos e dizer-lhe: não vai mesmo ser sempre assim. Talvez esteja a fazer isso, inevitavelmente, no espectáculo.
Esta peça dialoga com o trabalho que tens vindo a fazer, como o espectáculo O Eterno Debate?
Sem dúvida. São dois espectáculos sobre sexismo e exclusão, sobre tentarmos silenciar no Outro o que não entendemos, o que não abarcamos ou nem nos damos ao trabalho de ouvir e ver com atenção. A grande diferença é que em O Eterno Debate quis criar uma situação reconhecível e usar uma das grandes ferramentas do humor: a inversão de papéis e o absurdo que ela provoca. E é essa inversão que torna tão claro como naturalizamos a estigmatização por parte de quem a leva a cabo “na vida real”. Contudo, esse espectáculo era sobre o que eu queria dizer, sobre a urgência de o dizer, mas, por mais que estejamos sempre nos textos que escrevemos, quis ter distanciamento em relação ao objecto. Aqui é o contrário. Quis acreditar naquilo que muitas vezes dizemos a propósito das criações e dos livros: quanto mais pessoal, mais universal.
Teatro do Bairro Alto. Qui-sáb 19.30. 12€
+ Um festival para pensar os feminismos fora e dentro do teatro