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A novela à volta da Liga da Justiça não é a única a envolver Joss Whedon na constelação de grandes produções da WarnerMedia. Menos de um mês depois de Zack Snyder ter mostrado a sua “visão” para o filme cuja primeira versão, de 2017, Whedon teve a amarga tarefa de terminar, está prestes a estrear-se na HBO uma série com uma dança de cadeiras similar. Agora, no entanto, é Whedon quem deixa o projecto a meio (oficialmente, saiu pelo próprio pé, desgastado pela pandemia, embora se suspeite que a saída esteja relacionada com o ambiente hostil que é acusado de ter criado durante a rodagem de Liga da Justiça). Estamos a falar de The Nevers, uma revisão histórica da época vitoriana que, apesar de tudo, é um regresso de Whedon ao que de melhor ele sabe fazer: construir personagens femininas fortes, que não se coíbem de distribuir porrada sempre que necessário, inscrevendo-as em dramas de acção que deambulam entre o sobrenatural e a ficção científica. O criador de Buffy, Caçadora de Vampiros e de Dollhouse ficou-se, contudo, pelos primeiros seis episódios. É a primeira parte da primeira temporada, que chega agora ao pequeno ecrã. A segunda parte ficará a cargo de Philippa Goslett.
The Nevers passa-se na Londres do século XIX, onde um fenómeno inexplicável “tocou” parte da população, sobretudo mulheres, conferindo-lhe capacidades especiais – físicas, cognitivas, mágicas. O que causa um misto de reacções na sociedade particularmente conservadora da época: nas ruas, reage-se com estupefacção, entre a admiração e o medo; nos gabinetes, com incompreensão e desdém; e, nas catacumbas do sistema, com sevícias para subjugar e controlar estas pessoas, para as acorrentar ao trabalho. Qualquer similitude com as barbaridades cometidas além-mar em nome da Coroa inglesa não é mera coincidência. O respeito pela diferença é o mesmo. E nesse campo, como diria o poeta, The Nevers contém multitudes. Todas as mulheres “tocadas” têm capacidades distintas. Ora falam todas as línguas do planeta, ora disparam bolas de fogo, ora se limitam a ser boas gigantes. Vejamos as protagonistas: Amalia True (Laura Donnelly) consegue projectar-se no futuro, por instantes; Penance Adair (Ann Skelly) vê o fluxo da energia, faculdade essencial para seja a mais pródiga inventora pós-revolução industrial (olá, protótipo do automóvel).
Cerca de duas semanas antes da estreia de The Nevers, agendada para segunda-feira, 12 de Abril, a HBO reuniu virtualmente o elenco para conversar com jornalistas de todo o mundo. Laura Donnelly e Ann Skelly estavam lá e, tal como todos os outros actores e actrizes presentes, não deixaram de assinalar que a série é sobre a coexistência e sobre a lentidão do progresso social. Demora, e muito. Até a consciência de que é necessário mudar leva o seu tempo. A frase-chave é dita pelo fleumático Lord Massen (Pip Torrens) no primeiro destes seis episódios (que são metade da primeira temporada, o resto ainda não tem data): “O que a mulher considera chocante hoje, aceitará amanhã e exigirá no dia seguinte. E o imigrante, e o depravado.”
Uma mulher de punhos erguidos, pronta para o confronto físico, e nariz empinado? Não era aceitável na Inglaterra de então e até há pouco tempo não era comum nos ecrãs. Mas também isso vem mudando. Laura Donnelly sente-se “extremamente orgulhosa” por fazer parte desse movimento, de encarnar uma protagonista desempoeirada, num papel que o preconceito nos diria ser masculino (geralmente, os punhos erguidos são os dela, cuja personagem gere um orfanato onde acolhe e protege estas mulheres desamparadas e abandonadas pelas próprias famílias e pelos amigos).
“Quero estar envolvida em trabalhos que ajudem a equilibrar um bocadinho a sociedade. Ao mesmo tempo, como actriz, quero interpretar papéis complexos e interessantes, tão bem escritos como os personagens masculinos de outros programas”, diz Laura. Ann Skelly salta para a conversa: “Quando eu era mais nova, dizia que queria ser actriz porque via o Regresso ao Futuro ou o Scarface – A Força do Poder (quando se calhar ainda nem teria idade para ver) e havia homens com papéis maravilhosos. Eu queria ser o Doc do Regresso ao Futuro, queria ser o Al Pacino no Scarface. Queria fazer essas personagens imperfeitas e alucinadas. E agora a Penance tem uma ligeira vibe do Doc de Regresso ao Futuro!”
Quem também tem uma vibe do Doc é a personagem de Denis O’Hare, Dr. Edmund Hague, embora com mais queda para as experiências em humanos e menos para as máquinas. Hague opera sob as ordens de um elemento aparentemente insuspeito da aristocracia, comandando uma rede de rapto de mulheres “tocadas”, aplicando-lhes depois uma espécie de lobotomia que as deixa ordeiras e obedientes. Denis O’Hare alerta-nos, no entanto, para não olharmos para a sua personagem de forma unidimensional. “Ele faz parte de uma longa tradição de pessoas a fazerem avançar o conhecimento. Se pensarmos nos ladrões de túmulos do século XIX, eles estavam a desenterrar cadáveres para os dissecar e descobrir como funciona o corpo humano”, diz, sublinhando que a série explora essa dicotomia entre o médico, que cura, e o cientista, que comete actos questionáveis para desenvolver a cura.
Em The Nevers, de resto, é difícil encontrar quem se veja como vilão. “Nunca ninguém se sente um vilão”, diz Rochelle Neil, que interpreta Bonfire, a tal que consegue disparar bolas de fogo com as mãos e faz parte de um pequeno gangue de “tocadas” desalinhadas e tumultuosas (porventura porque a líder do grupo, a tresloucada Maladie, entregue à interpretação de Amy Manson, parece ser a única que se lembra do momento em que foi “tocada”). “Isso é o que os humanos têm de maravilhoso: são sempre os heróis das suas próprias histórias, há sempre um motivo para as escolhas que fazem”, observa a actriz. “A Bonfire é criminosa nos meios que usa para conseguir dinheiro, mas da forma que a vejo não é de todo uma vilã. Ela faz o que tem de fazer para sobreviver. Tenho muito respeito por isso.” Na janela ao lado, Vinnie Heaven, que dá corpo a Nimble, um ladrão encartado, concorda: “Sinto o mesmo. Não me sinto como um vilão, nem do lado errado. Porque o lado errado, nessa altura, era a sobrevivência. E eu estou bem com isso.”
A lista de personagens é longa e, com ela, Joss Whedon – que voltou a trabalhar com Jane Espenson (Battlestar Galactica: The Face of the Enemy) e Douglas Petrie (American Horror Story) – está sempre em busca da diferença e de tentar perceber como é que a singularidade de cada indivíduo encaixa no todo. Inclusive fora do elemento fantástico inultrapassável que enquadra toda a acção das “tocadas”. Nos costumes. Na fuga deliberada à norma. O caso mais estridente é o de Hugo Swann, um jovem endinheirado a explorar os prazeres da vida em pleno e à vista de todos, para escândalo da alta sociedade londrina (em particular de Lord Massen); e um grande amigo do contido Augustus Bidlow (Tom Riley), que por sua vez é o irmão mais novo de Lavinia Bidlow (Olivia Williams), principal financiadora do orfanato das mulheres com capacidades especiais.
James Norton, que faz o papel de Swann, reconhece que a sua personagem testa a moral vigente. “Isto é tudo sobre as pessoas que, por definição e por natureza, vivem na margem, na periferia da sociedade." Contudo, faz uma distinção importante com as protagonistas da história, voltando a pôr The Nevers a comentar a actualidade: “As pessoas ‘tocadas’ são ostracizadas porque são diferentes, logo perigosas, que é também como habitualmente olhamos para o mundo contemporâneo. É uma tragédia que se veja a diferença como algo ameaçador. O Hugo é alguém que tem autonomia para fazer as escolhas que quer fazer.” Não é o mesmo. James Norton sublinha que, apesar de não discriminar aquelas mulheres e de afrontar a mesma gente que elas, a sua personagem “não corre realmente um risco” com a vida que leva. “Ele pode fazer o que quiser porque tem a conta bancária do pai como garantia. Pode safar-se com qualquer coisa porque é um homem abençoado pelo privilégio, pelo poder e pelo dinheiro”, afirma. “Há uma parte dele que é similar às ‘tocadas’ – ele também vive na periferia da sociedade, e é suficientemente corajoso para ser um indivíduo progressista daquela forma –, mas ao mesmo tempo isso não tem tanto significado.”
HBO. Seg (Estreia T1 – primeira parte).
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