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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 672 — Inverno 2025
Mark Remick, um entusiasta produtor de cinema que sonha com filmes desde pequeno, é promovido a responsável dos Continental Studios. Com uma condição: tem de produzir um lucrativo blockbuster que seja, ao mesmo tempo, uma promoção da bebida Kool Aid, um clássico lá na América. É este o pontapé de saída para a série The Studio, uma incursão pelos bastidores de Hollywood liderada por Seth Rogan, o protagonista e também um dos realizadores, argumentistas e produtores da nova série da Apple TV+. Uma comédia que coloca em confronto a arte do cinema e o cinema pipoca e que conta com convidados especiais tão distintos como… Martin Scorsese. Tem estreia marcada para 26 de Março, poucos meses após o Reino Unido ter tocado na mesma ferida com The Franchise (Max), série que acompanha a caótica produção de um filme de super-heróis.
Levantar a cortina dos bastidores do planeta audiovisual não é inédito. Um dos exemplos mais óbvios talvez seja Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, que em plena era dourada de Hollywood lhe fez uma mordaz crítica, explorando o seu lado mais negro, superficial e calculista. E onde algumas estrelas, como em The Studio, apareciam no ecrã como uma versão delas próprias, de Cecil B. DeMille a Buster Keaton. A verdade é que a própria indústria, ao olhar-se ao espelho, acabou por premiar o argumento, direcção de arte e banda sonora com três Óscares, num filme que teve nomeações em todas as categorias principais. E a participação de muitos nomes sonantes a aceitarem fazer caricaturas de si mesmos em The Studio dá a parecer que Hollywood ainda não perdeu o poder de encaixe.

Conflitos internos, inseguranças, artistas narcisistas, chefes gananciosos, marketing, prémios e festas são alguns dos principais ingredientes de The Studio, cujo elenco, além de Rogan, é composto por Catherine O’Hara, Kathryn Hahn ou Ike Barinholtz. E por um rol de convidados especiais a cada episódio, que nos apresentam uma versão alternativa deles próprios. Além de Scorsese, é o caso de Zac Efron, Ron Howard, Zoë Kravitz, Anthony Mackie, Charlize Theron, Steve Buscemi, Rebecca Hall, Olivia Wilde, Sarah Polley ou Adam Scott. Assim mais ou menos como aconteceu nesta última temporada de Homicídios ao Domicílio (Disney+), com a participação de Eva Longoria, Eugene Levy e Zach Galifianakis. Então, mas porque é que o público gosta de ver famosos criadores de sonhos a darem tiros nos próprios pés ou a arrancar a cortina onde se escondem as ilusões?
“O que alimenta a trama é o conflito”
Em Portugal, há um exemplo semelhante deste olhar de dentro para dentro: a série Bastidores, do argumentista Rui Vilhena, que estreou na RTP1 em 2001 e que pode ser hoje recordada na plataforma RTP Arquivos. A produção apresentava-se como um retrato do quotidiano de uma produtora, entre a vaidade, a intriga e a ganância. Só não era, formalmente, uma comédia. “Eu sempre achei que o mundo da televisão, do cinema, enfim, da indústria do audiovisual, sempre fascinou o público. As pessoas são fascinadas por histórias que vêm de Hollywood, que saem na imprensa e hoje em dia nas redes sociais”, começa por dizer Rui Vilhena, numa conversa por telefone. Brasileiro com raízes portuguesas, o argumentista tem dividido a sua carreira entre os dois lados do Atlântico e é ele o autor de Ninguém Como Tu (2025), telenovela da TVI que terá um remake a estrear brevemente no mesmo canal, em formato “série longa”, descreve Vilhena.
À semelhança das novas séries que nos mostram as entranhas da indústria audiovisual, o seu argumento para Bastidores foi baseado na sua própria experiência e em histórias que foi ouvindo. “Isso pode, de certa forma, quebrar o fascínio, porque é óbvio que a partir do momento que se torna um produto que vai ao ar, nós sabemos que o que alimenta a trama é o conflito. E para haver conflito nós teremos que ser honestos sobre a indústria, sobre aquilo que se passa”, explica. A verdade é que a fórmula apresenta resultados. Na opinião de Rui Vilhena, o público gosta de ver “exactamente essa desconstrução”, por um motivo simples: “não deixa de ser um espelho da nossa vida, porque, no fundo, as pessoas cá fora, independente de estarem ou não na ilusão do audiovisual… é como se todos nós andássemos com máscaras para cima e para baixo. E essas séries que tentam desmascarar a indústria do audiovisual, é exactamente isso”.

E The Studio não só desmascara, como cavalga uma onda gigante de autocrítica. Em entrevista à revista Vanity Fair, em Dezembro passado, Seth Rogen e Evan Goldberg – velho amigo e colaborador de Rogen e um dos cinco criadores da série – explicam os meandros das contratações especiais em The Studio. “Apontámos para as estrelas e incluímos muitos desses nomes no guião, e tivemos a sorte de os conseguir,” disse Goldberg. “Mas, obviamente, algumas pessoas acabaram por não participar, não puderam ou não quiseram. Então, tivemos de nos adaptar. Houve momentos em que escrevemos um guião para uma pessoa específica, mas essa pessoa não pôde participar, e tivemos de reescrevê-lo completamente, o que implicou refazer todas as piadas, porque só funcionavam com aquela pessoa.” Felizmente, saiu-lhes a sorte grande, em particular após enviarem o guião aos representantes de Scorsese. O realizador participa logo no primeiro episódio e é uma peça fundamental para o desenrolar da história: é a ele que o personagem Mark Remick (Rogen) começa por recorrer para fazer o tal filme que é apenas um anúncio disfarçado da Kool Aid, em que o personagem principal é a mascote Kool-Aid Man. É importante explicar que a escolha da marca é uma ironia. Nos Estados Unidos, tem uma conotação negativa, já que a marca está associada a um suicídio em massa, em 1978, quando os membros de um culto misturaram a bebida com cianeto. Hoje em dia, quando alguém se quer referir a alguém que foi tomado por uma perigosa ideia estapafúrdia, é costume dizer-se que “bebeu Kool Aid”.

A ideia de enviar o guião aos representantes de Scorsese era um tiro no escuro, mas acabou por correr bem. Além de ter aceitado participar, parece que esse que é um dos mais aclamados realizadores de sempre não resistiu a dar outro tipo de ajudas: Scorsese chegou a murmurar dicas de realização durante a rodagem da série. Já a argumentista oscarizada Sarah Polley, que também participa com uma versão alternativa de si própria, achou que poderia ser representada de forma mais desagradável. Outra das grandes vitórias nesta incursão por grandes nomes da indústria a fazerem deles próprios veio da porta ao lado. Ted Sarandos, co-CEO da Netflix, aceitou participar. Só não nos parece que seja sem contrapartida, porque logo no primeiro episódio vislumbra-se um cartaz de um filme deste streaming concorrente da AppleTV+, numa cena de rua.

Em The Studio, os criadores garantem que cerca de 80% das situações são fiéis à realidade, vividas pelos próprios ou contadas por outras pessoas, à semelhança da experiência que Rui Vilhena partilhou com a Time Out. Um dos exemplos é uma frase que um executivo uma vez disse a Rogen e Goldberg numa reunião de trabalho e que chegou ao argumento da série: “Entrei nisto porque amo cinema e agora o meu trabalho é destruí-lo”.
AppleTV+. Estreia a 26 de Março
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