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Há precisamente um ano, Tiago Cadete estava a atravessar o Atlântico em direcção ao Rio de Janeiro. Embarcara, em Lisboa, num cruzeiro de 15 dias, mas não no papel de turista despreocupado que quer é beber caipirinhas, fazer fotossíntese e tirar fotos para o Instagram. Esta viagem fazia parte do processo de criação daquele que viria a ser o seu novo trabalho: a performance Atlântico, que se estreia esta quinta-feira na sala estúdio do Teatro Nacional D. Maria II.
Esta peça é mais uma etapa na relação pessoal, académica e profissional do artista e coreógrafo com o Brasil, país para onde emigrou há sete anos e onde se viu confrontado, olhos nos olhos, com as sequelas da colonização portuguesa e o respectivo sistema escravocrata. “A invasão que Portugal fez há 520 anos deixou marcas nos hábitos, na arquitectura, na linguagem, nos corpos, e isso está presente em várias camadas do quotidiano”, diz Tiago Cadete. Viver no Rio de Janeiro, uma das cidades brasileiras onde é mais evidente e brutal o legado da colonização portuguesa – e em que as dinâmicas sociais estão ancoradas num regime de apartheid não oficial – permitiu ao artista “uma tomada de consciência muito grande sobre aquilo que nos é contado na escola acerca do processo de colonização”.
Questionar e desconstruir essa narrativa romantizada e higienizada que é veiculada pelo discurso dominante, colocando em confronto o presente e o passado histórico e os equívocos que surgem pelo caminho, tem sido a base de trabalho de Tiago Cadete. Desde o mestrado em artes visuais, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que a sua investigação académica alimenta directamente as suas criações no terreno das artes performativas, e vice-versa. Esta longa história arrancou com Alla Prima (2016), onde o artista explorava os estigmas e o olhar eurocêntrico em torno “da ideia de Brasil” através da representação do corpo masculino desde 1500 até à contemporaneidade. Prosseguiu com Entrevistas (2018), espectáculo criado a partir de testemunhos de portugueses a viver no Brasil e que serviu de gatilho inicial para este novo trabalho.
“Uma das entrevistas foi a uma senhora de 80 anos que foi de barco para o Brasil. A experiência de emigração dela foi muito diferente da minha e da do resto do grupo”, recorda Tiago. “Pensei, então, em atravessar o Atlântico de cruzeiro e perceber o que esse tempo poderia revelar para mim e para o trabalho.” A ideia não era pensar os processos de migração, mas sim colocar em confronto “a experiência turística e a história”, num lugar onde esses conflitos e problemáticas entram em choque: por onde hoje passam turistas, há 500 anos passavam colonizadores, negros escravizados e marinheiros obrigados a sair do seu país. Na peça, este confronto é materializado através “da justaposição” entre as imagens em vídeo, captadas por Tiago Cadete ao longo da viagem, e o texto, que nos vai lançando interrogações sobre aquilo que está por trás, e nas entrelinhas, daquele “imaginário exótico e paradisíaco”. “É como um postal turístico que no verso tem um texto que nos conta uma outra história.”
Para a criação do texto (que conta com o apoio dramatúrgico de Bernardo de Almeida), Tiago Cadete foi beber não só a documentos e à bibliografia que suportam a sua tese de doutoramento – desde os registos escritos na época, como a Carta de Pero Vaz de Caminha, a obras de pensadores como Walter Benjamin, Ailton Krenak ou Enzo Traverso –, mas também ao cinema brasileiro, em particular o filme O Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, e o documentário Pacific, de Marcelo Pedroso. Apesar de as reflexões sobre história, memória e identidade que dão corpo a Atlântico virem, em boa parte, de um universo académico, Tiago Cadete torna-as acessíveis e abertas, procurando fintar o moralismo e a imposição de opiniões. “Tento que [a peça] tenha uma vertente pedagógica, mas eu estou ali entre o viajante que narra uma experiência com um pouco mais de reflexão e o professor de História”, observa. “O mais difícil é ser sincero comigo sem ser moralista, mas isso só o público é que poderá dizer.”
A “partilha” com o público da sua experiência, das suas interrogações e “vislumbramentos” está, na verdade, no centro de Atlântico, que o autor quer que se estenda além do palco. “São muitas coisas sobre as quais reflectir e as reflexões não acabam num trabalho”, assinala Tiago Cadete. “Apesar de eu partilhar algo naquela hora e com aquelas pessoas, o meu trabalho expande-se para lá daquele momento. É nesta conversa que tenho contigo, na pessoa que vai ler o artigo na Time Out, é neste circular de ideias em diferentes lugares e espaços. Talvez isso seja mesmo o trabalho.”
Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa). Quinta, 3, a sexta, 11. Dia 3 às 20.30; 4, 9, 10 e 11 às 18.30 e às 20.30. 11€.