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“Tinha que vir um nepalês descobrir trufas em Portugal?” Sim, mas é preciso ter calma

Foi nas zonas de Alenquer e Sobral de Monte Agraço que se descobriu, pela primeira vez em Portugal, a existência de trufa preta de Verão. Não é a mais valiosa, mas não ficará atrás da trufa italiana, garante Tanka Sapkota, chef envolvido na descoberta.

Cláudia Lima Carvalho
Editora de Comer & Beber, Time Out Lisboa
Trufa preta, Tanka
Francisco Romão Pereira Giovanni Longo e a cadela pisteira Pina vieram de Piemonte para se juntarem a Tanka Sapkota nesta missão
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São muitas as perguntas, ainda poucas as respostas e uma quase certeza: há trufa preta de Verão (Tuber aestivum) em Portugal na zona oeste do país. Quando em Abril João Pedro Pereira, de 12 anos, notou algo diferente no chão, nunca achou que um mês depois estaria a contar a sua história a uma horda de jornalistas, que lhe entravam portão adentro, liderados por Tanka Sapkota. Foi ao chef nepalês que o pai, Pedro Pereira, acorreu. “Pesquisei trufas em Portugal e o senhor Tanka aparece logo em primeiro lugar. Então, contactei-o.” Entre um acontecimento e outro, passou apenas um mês, tempo que permitiu a Tanka Sapkota envolver a comunidade científica e trazer de Itália Giovanni Longo, caçador de trufas do Piemonte, e a sua cadela pisteira Pina. “Eu sou só um indivíduo, posso ter algum dinheiro, mas não consigo investir tanto. Fiz o meu papel ao divulgar este produto, agora vou deixar para os governos, câmaras municipais”, disse o chef, depois de uma longa e entusiástica manhã, mostrando-se, ainda assim, disponível para continuar a ajudar.

Trufa preta, Tanka
Francisco Romão PereiraPedro Pereira com os filhos e Tanka Sapkota no lugar onde tudo aconteceu

Ainda em Lisboa, onde Tanka reuniu um grupo de jornalistas e a equipa com a qual está a fazer um documentário, a euforia era palpável, diferente daquela que já tinha levado o chef, Giovanni e imprensa numa outra prospecção a Trás-Os-Montes no ano passado, na altura sem resultados surpreendentes. “Eu penso sempre em impossíveis e há dois ou três anos pensei: será que há trufas em Portugal? Todos diziam que não, universidades e tudo. Até porque, se houvesse, já alguém tinha apanhado e falado. Mesmo assim, eu tinha este sonho”, começou por contextualizar Tanka, ainda na viagem para Alenquer, onde à sua espera estaria o presidente da Câmara daquele concelho, Pedro Folgado. “É uma maluqueira, é simplesmente uma maluqueira”, admitiu o chef, afirmando-se em dívida para com Portugal, aonde chegou em 1996 vindo da Alemanha. Em Lisboa, tem actualmente quatro restaurantes: Casa Nepalesa, Come Prima, Forno d’Oro e Il Mercato.

“Comecei a trabalhar com trufa branca em 2007. Um restaurante pouco conhecido ter trufa na ementa era uma coisa muito estranha – havia um/dois restaurantes que tinham trufas, mas pagava-se sem bebidas 150 euros, era um valor alto. Eu gostava de democratizar um bocadinho, não podia oferecer, mas queria democratizar a trufa branca”, recordou. Antes de se aventurar a introduzir uma iguaria tão rara, de aroma e sabor inconfundível, Tanka Sapkota partiu para Itália. “Fiquei três semanas com um senhor que tinha dois cães. Percebi que apanhar trufa não era tão fácil como parecia. A trufa preta é mais abundante, mas apanhar uma trufa branca num dia já é uma sorte”, explicou. “Começámos o menu com trufa branca em 2007. Com 40 euros conseguia-se comer um prato de trufa e por isso hoje o Come Prima tornou-se um centro de degustação de trufa. Num dia conseguimos servir um quilo – que restaurante consegue gastar um quilo de trufa branca em Lisboa? Ninguém acredita. Hoje, quando se fala em comer trufa, fala-se do Come Prima. Não é arrogância, mas o que os outros gastam numa semana, eu gasto num dia.”

A história que decide contar demonstra bem por que Pedro Pereira decidiu contactar o chef nepalês quando no seu pinhal descobriu, então, as trufas pretas. Trufas brancas em Portugal é algo em que nem um optimista como Tanka acredita. “Acho que é o milagre dos milagres.”

Tanka Sapkota
Francisco Romão PereiraTanka Sapkota e Giovanni Longo durante a caça à trufa com jornalistas

“Eu recebo uma, duas, três vezes por semana amostras de pessoas que perguntam se é trufa. E desta vez parecia mesmo uma trufa, não cheirava nada, mas enganava perfeitamente. Falámos com a Universidade de Coimbra, de Lisboa e Évora, mandámos amostras e todas confirmaram que era trufa preta de Verão. Só que não tinha cheiro”, contou com palavras que se repetiriam ao longo do dia, tal era o feito. “Depois de mais ou menos três semanas, voltámos ao terreno e [tinham] um cheiro como nunca tinha visto antes nas trufas pretas que comprávamos de Itália. Incrível. Ali percebemos que era mesmo trufa. Só o certificado não era suficiente porque se não tem cheiro…”

Numa cópia da análise fitossanitária do Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa, assinada pela professora Ana Paula Ramos, e partilhada com os jornalistas, confirma-se que “as estruturas analisadas constituem corpos frutíferos pertencentes à espécie Tuber aestivum”, a tal trufa preta de Verão. Mas a investigação ainda vai no início, alerta Celeste Santos e Silva. A professora auxiliar do Departamento de Biologia da Universidade de Évora participou inclusive no almoço que Tanka preparou no final da viagem, no Come Prima, onde deu a provar a trufa. Num brinde, a académica agradeceu ao chef pela “persistência e optimismo estonteante” e, em jeito de brincadeira, “aos javalis que foram os primeiros a encontrar” as trufas. 

Trufa
Francisco Romão PereiraAs trufas crescem longe da vista e só os cães treinados para o efeito as conseguem encontrar

No primeiro terreno visitado, Tanka acautelava precisamente para o facto de não haver tanta trufa por esta ter sido comida pelos javalis. Já no segundo local, o tal pertencente à família de Pedro Pereira, por estar vedado, “a trufa é abundante”. “Em Portugal de certeza que há muita trufa que nunca foi vista nem falada. O tempo o dirá, mas acho que vamos conseguir ainda fazer muita coisa em Portugal. O senhor apanhou três quilos em 20 metros quadrados”, garantiu. Entretanto, já foram apanhados quase 15 quilos – e a verdade é que nos cerca de 30 minutos que durou a visita dos jornalistas nesta morada, Giovanni e a cadela Pina desenterraram uns quantos exemplares.

“Qual é a origem, como é que ela surgiu ali? Neste momento ainda não sei dizer, só depois de terminar as análises que estou a fazer é que poderei ter, ou não, alguma segurança para responder a essa questão. Uma coisa é a identificação e dessa tenho 99% de certeza, outra coisa é a origem”, explica à Time Out Celeste Santos e Silva, ainda à espera dos resultados das análises recolhidas do solo e das raízes das plantas. “Isto é uma coisa extremamente recente”, continua, dizendo-se muito surpreendida pela descoberta. “Há muitos anos que trabalho nesta área, já andei pelo país todo à procura e nunca encontrámos nada parecido.”

Trufa
Francisco Romão Pereira

Anabela Marisa Azul, investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, vê esta descoberta como “algo maravilhoso”, mas não tanto surpreendente. “Não me surpreende porque tivemos uma Primavera com alguma chuva até bastante tarde. Tivemos um período húmido com várias semanas a chover em Maio, o que ajudou à fortificação destas espécies”, diz a também fundadora da nova Confraria dos Cogumelos e Trufas de Portugal. E vai mais longe: “Não me surpreende que possamos encontrar várias espécies no nosso país porque simplesmente nunca olhámos para isto com olhos de ver”, afirma, lamentando a falta de meios para que estas investigações possam dar frutos.

“Não temos um trabalho de monitorização muito aprofundado no nosso país porque isto são trabalhos que temos muita dificuldade em aprovar. Aliás, eu tive vários trabalhos submetidos à FCT que nunca foram financiados”, argumenta, lembrando uma investigação levada a cabo há uns anos na zona de Montemor-o-Novo, onde foi detectado o tuber borchii (trufa branca). “Nós encontramos tuber borchii, as duas estirpes, os mating type, nas duas raízes de sobreiro, mas não conseguimos encontrar a trufa”, esclarece. “Ou seja, tuber borchii há-de haver ali, mas é preciso investir, é preciso andar ali a bater com o cão todos os anos e não há esse investimento do Estado”, lamenta. “É muito curioso porque se falarmos em startup para produzir qualquer coisa até acontece, nem que a empresa depois vá à falência passados três, quatro, cinco anos. É que nem estamos a falar de muito”, continua. “Neste momento temos que mandar vir cães de fora e para eles isso é uma vulnerabilidade, ou seja, não conseguem perceber que não há outra forma de conhecer o território e de fazermos um estudo aprofundado do nosso potencial de inóculo.”

Qual é a origem desta trufa?

À semelhança de Celeste Santos e Silva, também Anabela Marisa Azul explica que é preciso perceber as características do solo, as características do bosque, para perceber exactamente em que circunstâncias apareceu esta trufa de Verão, que até pode ter vindo nas raízes dos pinheiros. É preciso, por isso, cautela. Ou seja, não é porque aconteceu esta descoberta que se pode apostar num cultivo imediato. E defende uma visão integrada que respeite o ecossistema, exemplificando com o caso Espanha, onde “bosques foram derrubados para se transformar em plantação”. 

Tanka
Francisco Romão PereiraO presidente da Câmara de Alenquer ao centro

“Foi com surpresa que eu percebi que aqui no concelho há trufa, debaixo de pinheiros mansos, basicamente”, reage à Time Out o presidente da Câmara Municipal de Alenquer. “É tudo muito recente portanto agora temos que perceber a extensão, se de facto está circunscrito a dois, três sítios, se é mais generalizado. Temos de falar com as pessoas também, com os privados para perceber qual é a viabilidade ou a disponibilidade deles para fazer essa exploração. Há aqui muita coisa em jogo”, diz, demonstrando o interesse da autarquia, “até porque agora é mais um produto endógeno de Alenquer”. “Vamos acompanhar e perceber de que modo a Câmara se pode posicionar neste processo.”

A Time Out questionou também o Ministério da Agricultura e Pesca e o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) para perceber de que forma está a ser feito o acompanhamento deste caso e as diligências tomadas, mas não obteve ainda resposta. 

Come Prima
Francisco Romão PereiraDurante uns dias, ao jantar, é possível degustar estas trufas no Come Prima

Enquanto isso, Tanka Sapkota põe a trufa preta de Verão a uso e à prova no Come Prima, para que todos a possam conhecer, tanto na entrada, com um creme de batata, ovo orgânico e trufa (13,95€), como no principal, com um tajarin com sálvia e trufa (19,95€). Mas atenção que estes pratos só estão disponíveis ao jantar e com reserva obrigatória. 

Tanka
Francisco Romão PereiraTanka Sapkota com algumas das trufas apanhadas nos últimos dias

“Tinha que vir um nepalês para descobrir trufas em Portugal?”, brinca o chef, para quem João Pedro Pereira, o miúdo que deu início a tudo é já um “afilhado”. “Obrigada a ti por concretizares o meu sonho, porque ninguém acreditava que em Portugal que havia trufas.”

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