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Ulisses é brasileiro e vem dançar a Lisboa

Ao som da dance music dos anos 90, o colectivo Mexa apresenta ‘Poperópera Transatlântica’, peça-performance a partir de Homero. Esta odisseia passa pelo TBA a 7 e 8 de Outubro.

Beatriz Magalhães
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Beatriz Magalhães
Jornalista
Mexa
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Odisseia, proveniente da palavra grega odysseía, significa uma viagem cheia de aventuras e dificuldades, ou uma série de acontecimentos trágicos e variados. A Odisseia é também o nome da obra de Homero, em que são narradas as façanhas de Odisseu, ou Ulisses, de regresso à sua Ítaca natal, passando por naufrágios, monstros, feitiços e ilhas encantadas. Em Poperópera Transatlântica, não se conta a Odisseia de Odysseus, mas sim a de Aivan, Tatiane, Dourado, Bárbara, Alê, Dani, Patrícia e Anita. É no Teatro do Bairro Alto, a 7 e 8 de Outubro, que o colectivo brasileiro Mexa apresenta esta peça-performance. 

Revisitar um livro do cânone, relacionando-o com as histórias pessoais de cada performer, ao som de dance music dos anos 90, parece uma ideia inusitada, mas é exactamente isso que o Mexa apresenta em palco. O facto de o texto já ter sido citado e revisitado incontáveis vezes é o que o torna interessante para este grupo de São Paulo. “O que acontece quando a gente pega essa referência máxima para tanta coisa e a desloca para histórias, narrativas e corpos que usualmente não foram colocados na linha da história, mas que ao mesmo tempo sempre existiram? Talvez para esse grupo não faça sentido nenhum, ou faça”, explica o dramaturgo e encenador João Dias Turchi, por videoconferência, a partir do Brasil.

O Mexa nasceu em 2015, pelas mãos de Anita, uma das actrizes da peça, após episódios de violência discriminatória em alguns centros de abrigo em São Paulo. Desde então, o grupo é descrito como um colectivo de artistas, activistas, pessoas negras, trans, LGBTQIA+ e mães, mas, segundo Turchi, é muito mais do que isso. Por um lado, é importante que estas nomenclaturas existam, já que o colectivo representa várias comunidades minoritárias, mas estas não devem ser tomadas como “blocos iguais”. Cada pessoa tem a sua própria individualidade, talentos e desejos, daí que seja um desafio necessário montar uma obra que tenha sentido e unicidade, “sem matar e sem sufocar as potências individuais de cada pessoa”, realça Turchi, que é parte do colectivo desde 2016.

Uma DJ, um palco que, de vez em quando, se transforma em pista de dança, luzes pulsantes e apagadas, vídeos, imagens e ecrãs pretos – esta é uma peça-performance multidisciplinar e dinâmica, que nasce das possibilidades e sonhos que o pós-pandemia traria para o Mexa. Depois de apresentar uma performance de rua, que despertou o interesse de uma programadora cultural, não tardou a surgir uma digressão pela Europa. Desta proposta, aparentemente irrealizável, surge então a ideia de viagem como algo utópico, que se revela um motor de criação para o grupo. Até chegarem a Odisseia, foi um caminho rápido. Ao relacionar-se com uma personagem do livro, cada performer cria a sua personagem a partir das suas vivências. Num dos momentos da peça, Anita, que até então está deitada numa das pontas do palco às escuras, é ajudada pelos demais a levantar-se e, sentada na sua cadeira de rodas, enquanto as luzes se focam nela, diz: “Eu sou actriz, mas eu também sou actriz da vida real”. É nesta dualidade de conceitos que a peça se torna uma “costura biográfica das pessoas do grupo” e, em simultâneo, um diário do processo de criação da mesma e um relato, em constante actualização, das viagens do colectivo, que já se apresentou em Berlim e Bruxelas.

Uma das características que distingue a peça é o facto de se modificar e adaptar a si mesma e aos performers. À semelhança das instabilidades e mudanças que ocorrem no grupo, a peça nunca é igual duas vezes, quer haja vídeos e imagens acrescentados às apresentações ao longo do caminho, quer pela saída ou entrada de algum dos actores. “Ela realmente se transforma, ela organicamente se transforma”, confirma Turchi.

colectivo mexa
Colectivo Mexa

“Mexa deseja boa sorte para quem escreve as legendas”, podia ler-se em inglês, num dos momentos da performance, quando esta foi apresentada na Dinamarca, em Maio. A cena em que Patrícia improvisa o texto revela-se um jogo entre performer e quem faz as legendas da peça; aqui, a ideia a transmitir é a de que a história de vida da actriz é impossível de ser traduzida. Esta é uma questão marcante de Poperópera Transatlântica, já que na maioria dos lugares por onde passa, à excepção de Lisboa, a língua falante não é o português. Os equívocos de tradução que daqui surgem são ainda utilizados numa forma de explorar a questão em torno de escrever, traduzir, legendar e repetir a própria história pessoal. “Será que a minha história também se torna parte de uma ficção? Continua a ser a minha história? E se a minha história mudar, mas a legenda não mudar? Então eu sou uma personagem de mim mesmo?” O que importa para João Turchi é a forma como o público apreende a performance, não se entende palavra por palavra o que é dito. 

A conexão com a ideia de ópera e festa surge em força no fim da peça. A música, que pode ser vista como o fio condutor da história, transporta-nos para o meio de uma pista de dança, que retrata um “espaço de possibilidade de desenvolver a própria identidade”. Chegámos a Ítaca, o lugar onde as pessoas do grupo podem ser quem verdadeiramente são.

O espectáculo em Lisboa, afirma o encenador, é o que o grupo mais anseia fazer. Não só pelo facto de ser a primeira vez que actuam num lugar em que as legendas não são necessárias, mas também pela ligação que existe entre o Brasil e Portugal, “entre metrópole e colónia”. É uma obra que toca também no processo de colonização e no barco que, 500 anos depois, volta de forma inversa, imaginário muito presente na cultura brasileira, observa João Turchi. 

TBA (Lisboa). 7 e 8 Out. Sáb 19.30, Dom 15.30. 12€

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