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Um brinde à coragem de Sara Carinhas

Em ‘Última Memória’, a actriz e encenadora desfaz a meada de recordações que a atravessam, sejam dela própria ou dos outros. “Não acabamos nos nossos limites”, diz. Um monólogo para ver no São Luiz, em Lisboa, a partir de 22 de Março.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
Última Memória
Estelle valente/São LuizSara Carinhas em ‘Última Memória’
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Qual é a nossa primeira memória? À entrada para a Sala Mário Viegas, Sara Carinhas vai pedir aos espectadores que as escrevam em pedacinhos de papel, para depois os depositarem numa caixa de madeira. Vão fazer parte do espectáculo, quando a actriz e encenadora estiver a mostrar fotografias antigas em diapositivos, desfiando memórias da própria infância. “Eu vivi uma vida soviética. Dividia o meu apartamento com mais três famílias”, vai revelando, entre imagens de muito calor, de relva verde, verde, verde, de riso e felicidade inteira. Vai revelando como tudo isso lhe lembra o som do avô a cantarolar enquanto as pérolas dos colares que ele fazia tilintavam umas nas outras. Memórias suas que vai misturando com as nossas e com as de outros membros da família, memórias que foi descobrindo ora em conversas, ora nas fotografias do bisavô retratista em Viana do Castelo, ora no diário da avó Maria da Nazaré, que trocou o frio da Guarda por Algés e que morreu com Alzheimer, esquecida da sua história. A própria Sara – ou “besnica”, como lhe chamava a avó – tem uma “branca” sobre o momento desse diagnóstico: “Quem é que lhe disse, como é que ela reagiu, quando é que decidimos que iria lá para casa, se a abracei…”

Última Memória estreia-se a 22 de Março e fica em cena até 2 de Abril na black box do São Luiz – Teatro Municipal, em Lisboa, que terá uma disposição diferente do habitual. Sara Carinhas quer aproximar o público de si enquanto lhe conta estas e outras memórias, enquanto lhe vai falando de efabulações, enquadramentos, exclusões e esquecimentos. Ou seja, do que escolhemos lembrar e de como essas memórias nos moldam; de como é mais fácil lembrarmo-nos das coisas que doem; de como adoptamos recordações alheias, ficções até (“Não acabamos nos nossos limites”, diz às tantas); e de como, por vezes, nos vemos encurralados em curiosidades insanáveis sobre as memórias de quem já não existe. Parece um exercício sobre o passado, ou de um saudosismo estéril. Não é. É geografia emocional.

Última Memória
Estelle Valente/São Luiz

“No outro dia perguntaram-me se esta preocupação com a memória não era uma coisa de pessoas mais velhas. Disse que achava que não”, afirma à Time Out, após um ensaio. “Às vezes só falamos da memória, ou da perda, ou de quem é que somos de facto numa zona em que temos muito tempo para trás. E há assuntos aqui que acho que podem ser bons de pôr na minha idade [35 anos], para que não sejam só falados depois, ou fingir que não existem, para serem mais naturalizados. Porque acho que se falássemos mais sobre determinadas coisas elas não ficavam um fantasma tão grande.” No monólogo, Sara Carinhas expurga um deles, lamentando-se assim: “Se eu tivesse tido coragem, tinha sido fotojornalista. Mas não fui.” No entanto, o que está em palco não é senão um acto de coragem. Uma exposição de amor, alegria, perda e tristeza, que a actriz, também autora do texto, vai fazendo descansar nos livros que tem sobre a mesa (Virginia Woolf, Maya Angelou, Margaret Atwood…), em histórias optimistas (o projecto Future Library, na Noruega), nas músicas que vão soando (“Os Bravos”, de José Afonso; “Cordão”, de Chico Buarque; “Losing My Mind”, de Liza Minnelli…). São pontos de fuga para aprofundar o olhar.

Sara Carinhas faz vários brindes ao longo da peça – ao mistério, às coisas difíceis, à coragem. Tudo o que precisou para pôr cá fora Última Memória, mesmo depois de ter sido cancelada em 2020 e de ter sobrevivido confinada até hoje. “O que eu queria fazer com o espectáculo era muito mais difuso do que o que ele é agora”, revela. “Já foi há três anos. Entretanto, foi cancelado. Depois aconteceu-nos a pandemia e eu já não queria fazer um monólogo, porque já não queria estar sozinha... E com este grupo de pessoas que se juntou a mim, as ideias que tinha tornaram-se um bocadinho mais cosidas umas às outras e surgiu ainda a questão de uma actriz que acaba por viver também disso, da memória. O que acontece se ela não a tiver?” Pode ser que o público dê uma ajuda. A tal equipa – integralmente feminina: Nádia Yracema e Sara Barros Leitão (consultoras artísticas), Joana Botelho (apoio à dramaturgia), Joana Picolo (assistência de encenação), Madalena Palmeirim (desenho de som), Catarina Côdea (desenho de luz), Rita Faustino (direcção de produção) e Mariana Dixe (produção executiva) – também está lá para o que der e vier.

Última Memória
Estelle Valente/São Luiz

É contudo nos objectos que leva para cena (mais o seu cãozinho, perto do final) que Sara Carinhas se apoiará sobretudo para arrumar as suas memórias (“Eu tenho uma grande dificuldade da ordem cronológica na minha vida. Nunca consigo dizer que idade é que eu tinha quando isto ou aquilo aconteceu. Talvez porque ando muito distraída e não vejo as coisas…”) e para nos desafiar a lembrar e a questionar aquilo de que nos lembramos. “A memória também é um bocadinho uma efabulação, uma construção. Não sabemos se é totalmente verdadeira. Tanto que há muita gente que diz ‘Ah, eu escrevi uma memória que não sei se é das fotografias que me mostraram’. Já não sabemos se é o que os outros contaram… E mesmo durante a nossa vida, acho que vamos construindo quem somos a partir do que consideramos serem as coisas importantes que nos aconteceram. Fomos escolhendo essas memórias [que nos moldam]”, observa. “Se calhar, se escolhêssemos outra narrativa, mesmo dentro do que nos foi acontecendo, seríamos outra pessoa.”

São Luiz – Teatro Municipal (Sala Mário Viegas). 22 Mar-2 Abr. Qua-Sáb 19.30, Dom 16.00. 12€

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