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Um Passaporte daqui para fora: “Não é por sermos artistas que não somos exportáveis”

A directora de casting Patrícia Vasconcelos organizou a maior edição de sempre do Passaporte, iniciativa que dá a conhecer actores portugueses a directores de casting de todo o mundo. Virgílio Castelo e Rui Maria Pêgo foram dois dos artistas seleccionados.

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
Jornalista
Passaporte 2023
©DRPassaporte 2023
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Nunca tantos actores portugueses chegaram aos ecrãs de produções internacionais e o país vai celebrando a cada vez que caras conhecidas por cá aparecem em séries e filmes produzidos além fronteiras. Há várias razões para isso acontecer, mas uma das principais é o Passaporte, uma iniciativa lançada em 2016 por Patrícia Vasconcelos, e que já esteve por um fio, por falta de financiamento. Mas a experiente directora de casting foi à luta e este ano conseguiu apoio do Fundo de Fomento Cultural, ao qual se juntaram os apoios da Câmara Municipal de Lisboa e da Fundação GDA. Patrícia Vasconcelos tem revolucionado a forma de pensar o audiovisual em Portugal, valorizando os talentos nacionais, neste caso os actores portugueses que têm carimbado o passaporte para trabalhar noutras geografias.

A edição deste ano, que decorreu entre decorreu entre 28 de Junho e 2 de Julho, recebeu um recorde de 202 candidaturas, entre elas as de Virgílio Castelo, um dos mais conceituados actores portugueses, e também de Rui Maria Pêgo, radialista que recentemente apostou na sua formação como intérprete, alguns anos após ter criado a série Filho da Mãe, para o Canal Q, em que diz ter percebido “que poderia ser actor”. Falámos com os ambos e também com Patrícia Vasconcelos e com a britânica Kate Rhodes James, umas das directoras de casting convidadas para esta edição, num total de 21 homólogos oriundos de vários países.

“O que vai acontecer no futuro, não sei. Não sei mesmo”. Patrícia Vasconcelos nunca está segura da continuidade do Passaporte, iniciativa que já levou Nuno Lopes a White Lines (Netflix), Albano Jerónimo a Vikings (Netflix) ou Joana Ribeiro a Das Boot (SkyShowtime). E confessa estar cansada, embora encontre sempre motivos para festejar. Afinal, conseguiu, outra vez, reunir mais de duas dezenas de reputados directores de casting de todo o mundo em Portugal, para conhecer o talento de vários actores nacionais. “Mas custa-me muito que ainda não haja o orçamento total do evento, que anda nos 80 mil euros, no mínimo. Isso custa-me um bocadinho, porque sai-me do pêlo”, lamenta. O que também saiu do pêlo foram os 606 vídeos que o júri deste ano teve de avaliar para seleccionar os actores participantes nesta edição do Passaporte, que bateu recordes de candidaturas. “Este ano foram 202. E a candidatura é pesada, com showreel, foto, self-tape... Cada um de nós teve de ver 606 vídeos, porque cada candidatura tem três”, recorda. O processo envolve um júri de cinco elementos: três internacionais, que mudam todos os anos, mais a própria Patrícia Vasconcelos e Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema.

Passaporte 2023
©DRPatrícia Vasconcelos

Nem sempre conhecemos os nomes da direcção de casting, mesmo das mais conhecidas produções. Mas são estes profissionais que guardam no seu arquivo os muitos nomes de actores com que se vão cruzando. Por exemplo, já ouviu falar de Kate Rhodes James? Não? E se dissermos títulos de séries como Sherlock, House of the Dragon ou Raised by Wolves? Lá está. Kate Rhodes James foi uma das profissionais presentes nesta edição do Passaporte, com quem estivemos um pouco à conversa. Tem formação de actores, ainda trabalhou como actriz nos idos anos 80, mas foi com Debbie McWilliams (directora de casting de praticamente todos os filmes 007) que impulsionou a carreira, primeiro como assistente da direcção de casting. “Só comecei a fazer filmes de estúdio nos últimos cinco anos. Passei 25 anos a fazer muita boa televisão, que ainda faço. Mas só comecei recentemente [a fazer filmes], porque é apenas neste ponto da minha carreira que estou pronta para isso”, diz a directora de casting que trabalhou no filme Casa Gucci (2021).

Kate terminou recentemente o casting para Gladiador 2, de Ridley Scott, e está a trabalhar na série Alien, do produtor e argumentista Noah Hawley, também criador da série Fargo (2014-2023). “Ele está a fazer a mesma coisa com o Alien. Portanto, é uma história completamente nova, mas tem o alienígena”, diz Kate, uma fã confessa do franchise iniciado com o filme Alien, o Oitavo Passageiro, em 1979, realizado por Ridley Scott. Para Kate, é "imensurável" a importância que iniciativas como o Passaporte tem para a sua profissão e também para os actores. "Este ano, o Passaporte reuniu os maiores directores de casting do mundo. E ter esse acesso a directores de casting é uma grande dádiva. As pessoas não estavam a considerar estes actores, a não ser se os papéis dissessem ‘português’ ou ‘espanhol’. Assim temos a melhor pessoa do mundo, independentemente da sua origem.” Sobre a sua vinda ao Passaporte, explica que está sempre à procura de alguém, mesmo que não seja para um projecto específico. “Estou sempre à procura de alguma coisa. Alguém que me faça sentar. Alguém que tenha algo invulgar. Gosto do peculiar. Não sou particularmente fascinada pela beleza. Mas tomo nota de todas as pessoas com quem me cruzo, escrevo tudo e arquivo quando regresso ao escritório.”

Passaporte 2023
©DROs directores de casting presentes nesta edição do Passaporte

“Acho que há aqui uma oportunidade de ouro"

Respect Virgílio Castelo. Sujeitar-se a eventualmente não ser escolhido! Uma coisa é eu achar que tem talento, outra coisa é o júri internacional olhar para ali e ser unânime. Claro!” Patrícia Vasconcelos não escondeu o entusiasmo pela candidatura de Virgílio Castelo, um dos actores mais experientes do panorama audiovisual português. Por telefone, o actor contou-nos que a imparcialidade da selecção dos actores foi muito importante neste processo. “Sujeitamo-nos à avaliação de pessoas que nunca nos viram na vida, que olham para nós de uma maneira que é muito mais objectiva do que as pessoas que já nos conhecem há 10, 20, 30, 40, 50 anos aqui em Portugal, e que podem ter simpatias ou antipatias mais subjectivas. E isso foi uma das coisas de que mais gostei, a ideia de ser uma coisa imparcial.”

Mas o que motivou esta sua candidatura, a primeira de sempre ao Passaporte? “Desde que há o Passaporte que tenho vontade de concorrer. Mas a verdade é que não era ainda o momento certo, porque este é o primeiro ano que a data me apanha entre trabalhos. A outra razão é que andei a retardar esta candidatura até as minhas filhas mais novas cresceram um bocadinho mais. Porque, perante a hipótese de vir a trabalhar no estrangeiro, não gostava de as deixar por aqui, assim, mais pequeninas”, conta à Time Out. Virgílio Castelo sublinha que, na sua profissão é preciso arriscar e a expectativa de vir a trabalhar lá fora “era muito apelativa”. Ainda assim, diz ter tido “imensa sorte” por nunca lhe ter faltado trabalho em Portugal e que “não será um big deal se isso ficar por aqui”. Formado na Escola do Teatro Nacional de Estrasburgo, entre 1978 e 1981, chegou a ser convidado para ser professor assistente da escola. “Era uma possibilidade de ter eventualmente feito uma carreira em França e depois, quem sabe, por outros países. Mas o que aconteceu é que eu, nessa altura, tinha 27 anos e aquela sensação de querer voltar para Portugal, porque em Portugal estava tudo por fazer. Essa ideia trouxe-me de volta para cá, depois percebi que continua tudo por fazer, quarenta e tal anos depois”, lamenta.

Passaporte
©DRVirgílio Castelo em modo Passaporte

Virgílio Castelo espera mais apoio do Governo nesta área. “Acho que há aqui uma oportunidade de ouro, se o Governo perceber que tem que olhar para estas coisas da cultura de uma maneira um bocadinho menos afectada. O audiovisual português precisa de ter um empurrão como teve o sector do vinho, do calçado, dos têxteis, como teve o sector do turismo. Ou seja, o Governo tem que olhar para esta actividade nacional como uma actividade exportável. Nós não é por sermos artistas que não somos exportáveis. Eu acho que o Almodóvar é profundamente espanhol e profundamente universal. E nós precisamos que a nossa maneira portuguesa de estar no mundo a representar, a escrever, a dirigir, a filmar, seja lá o que for, tem que ser visível. E para ser visível tem que ter um apoio no arranque. Eu acho que este sector precisa de ser tratado sem complexos como uma actividade, além de cultural, também económica, que pode trazer frutos ao país”, defende.

“Já chega de batermos sempre palmas ao desenrascanço”

Também em estreia na candidatura ao Passaporte, Rui Maria Pêgo. Conhecido radialista, já nos habitou a ver o seu trabalho na área da representação, com destaque para a série Filho da Mãe (2015-2016), emitida pelo Canal Q e da sua autoria, assim como em Avenida Q, adaptação do musical que estreou na Broadway em 2003. O ano passado, terminou a sua formação na Bristol Old Vic Theatre School e em Março, após dois anos de ausência, voltou à rádio Comercial com o podcast Debaixo da Língua. Comunicador nato, não descarta a possibilidade de continuar com um pé na representação e outro na rádio, e está feliz por ter sido no seu país que teve a oportunidade de conhecer nomes incontornáveis na direcção de casting, como Nina Gold (A Guerra dos Tronos, The Crown, Indiana Jones e o Marcador do Destino, Star Wars: A Ascensão de Skywalker). “Poder fazer um programa como o Passaporte é muito bom, porque me prova que o meu país até me está a dar mais oportunidades do que outro. Nenhuma das pessoas com quem andei na escola, ou que saiu da escola há algum tempo, alguma vez conheceu a Nina Gold. É para lá de extraordinário. Portanto fico muito contente, não só que o Passaporte exista como, tenha existido obviamente para mim, mas que exista como hipótese para os actores portugueses de internacionalizarem.”

Passaporte
©DRRui Maria Pêgo no Passaporte

Rui Maria Pêgo identifica algo especial no talento português, em concreto “um rasgo no olhar que as pessoas fora de Portugal não conhecem”, e sublinha também a imparcialidade da selecção do Passaporte, até porque sente ter “um privilégio assegurado”, por ter crescido “numa família que tem acesso a muitas coisas”. “O processo de selecção é apertado e tem a ver também com o que é fazer bem uma self-tape [vídeo caseiro em que um actor interpreta determinado papel para submeter aos directores de casting]. Eu preparei-me bastante, porque no tempo em que não estava a trabalhar em Inglaterra, estava a bater com a cabeça nas paredes e a aperceber-me que havia skills que eu tinha que dominar e que não dominava. Fui estudar teatro e interpretação para cinema, mas não fui ensinado a fazer self-tapes. E parte do problema, às vezes, de não ser escolhido para estas coisas, parte de não ter os códigos certos. Tive muita sorte em ser escolhido, mas também sei que foi muito trabalho”, explica. Códigos que diz lhe terem faltado quando concorreu para o curso de Drama na Universidade de Yale, ou para a The Juilliard School, embora aos 26 anos tenha feito uma formação de Verão na New York Film Academy, onde esteve um mês e meio a fazer teatro musical, antes de ter sido seleccionado para o Avenida Q. Hoje, com 34 anos, diz estar a “viver um sonho”, embora admita que, se calhar, está na fase “romântica das coisas”. “Mas acho que podemos todos concordar que iniciativas como o Passaporte são fundamentais para cimentar aquilo que pode ser a cara de Portugal nesta área. E o que a Patrícia conseguiu… acho que as pessoas não têm noção.”

Rui Maria Pêgo olha com atenção para o actual momento do audiovisual português, que considera ser um “momento muito feliz”. “Por exemplo, acho que Rabo de Peixe é um esforço óptimo e muito meritório de uma série de coisas que podemos fazer. Posso dizer que é perfeitamente representativo de tudo? Não, claro que não, porque nada é. O único perigo, às vezes, é quando estamos a fazer coisas que são para gigantes multinacionais e nós perdemos um pouco a nossa linguagem. Acho que isso tem que ser feito com cuidado e Rabo de Peixe é um bom exemplo. Reconheço a importância do que aquilo é para a nossa indústria e não significa que o resto não seja feito. É o oposto. Por haver Rabo de Peixe, mais coisas diferentes também vão poder ser feitas. Depois podemos opinar se o streaming é uma liberdade total ou se é uma homogeneização do olhar e da linguagem. Sem dúvida que esses perigos existem todos. Mas também acho que os actores, autores e artistas portugueses furarem internacionalmente é bom para todos”, defende.

O actor tem já alguns projectos na calha para a televisão, em particular para a RTP. Um deles ainda não pode dizer qual é, a não ser que será uma série que deverá estrear no próximo ano, e outro é a série Prisma, criada por Sónia Balacó, Zé Bernardino, Rita Revez e Maria de Sá. "É um projecto que começa na RTP Play e que esperemos que chegue à televisão também. Mas é um projecto feito com enorme cuidado. É uma série com muitos olhares, esteticamente superlativa, feita com um orçamento diminuto", revela. E aproveita para criticar um certo modo de ser português: “Eu acho que já chega de batermos sempre palmas à nossa capacidade de desenrascanço. Porque o nosso desenrascanço é fixe, mas é também a razão pela qual muitas vezes as coisas não têm mais estrutura e mais condições. E a qualidade do objecto precisa de tempo para ser criado, para poder existir e o tempo custa dinheiro. Para haver mais dinheiro, para isso ser possível, que venha a Netflix, a HBO e que venha a Amazon também. Às vezes sinto um bocadinho que há uma resistência de uma elite que, de alguma forma, quer defender as nossas linguagens e tem de fazê-lo, eu acho importantíssimo que essas linguagens existam. Estamos a falar de cinema de autor e cinema documental, estamos a falar de arte. Não podemos - nem devemos - permitir que as necessidades do streaming apaguem a voz artística portuguesa. Mas haver mais dinheiro, permite que mais ideias proliferem, mais vivências, mais oxigénio e trabalho para todos."

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