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Um Rato com menos carros, mais árvores e esplanadas

A Câmara de Lisboa quer começar 2024 com um processo participativo sobre o Largo do Rato, à semelhança do que fez com a Almirante Reis. Fomos ouvir o que há a dizer sobre este nó por desatar há mais de 30 anos.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
Jornalista
Largo do Rato
Arlei LimaLargo do Rato
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Sete vias para carros, duas para transportes colectivos, zero para bicicletas. Atravessar o Rato a pé é uma aventura ou um perigo. Ao tráfego intenso somam-se os desníveis do terreno, bem como a falta de abrigos do calor e de espaços para estar. Em suma, ninguém vai ao Rato passear, encontrar um amigo ou ver as vistas. 

Como transformar, então, este ponto nevrálgico da cidade num lugar aprazível? Ideias não faltam, desde a construção de um túnel que permita trazer à tona uma área pedonal e de lazer, à redução abrupta do trânsito automóvel ou à transformação do Rato num eixo central do transporte ferroviário metropolitano. 

O Largo do Rato já foi alvo de uma série de estudos e propostas de reabilitação, na verdade. Mas nenhuma foi para a frente. Falta de vontade política é o principal motivo apontado, mas a complexidade técnica do lugar (rede de águas, eixos viários, topografia e património) é outra justificação para a inércia. A proposta mais recente foi feita pelo executivo de Fernando Medina, no programa Uma Praça em Cada Bairro, que incluía, entre outros pontos, o regresso do eléctrico 24 (Cais do Sodré-Campolide) e aumentar o passeio sul (do lado dos cafés). Mas na óptica do executivo actual, a ideia não serve. É preciso olhar para o Rato como “uma folha em branco”, defende Joana Almeida, vereadora do Urbanismo na Câmara Municipal de Lisboa (CML), em conversa com a Time Out. 

A autarquia decidiu, então, abrir um processo participativo, faseado e orientado para quatro grandes áreas: segurança, mobilidade, património e ambiente. “Vamos criar uma página específica para o Largo do Rato, à semelhança do que foi feito com a [Avenida] Almirante Reis. No primeiro trimestre, vamos contar com diferentes momentos de participação pública [tanto de cidadãos como de especialistas], no segundo trimestre será feito um relatório e, mais tarde, um concurso público de ideias”, informa a responsável. Na base da consulta aos cidadãos, que a autarquia pretende que seja o mais informada possível, será tido em conta todo o histórico sobre o Largo do Rato. Como diz Joana Almeida, “já se fizeram vários projectos e é preciso contar essa história”. 

Em Outubro, a CML já participou numa conversa sobre o Rato. A iniciativa partiu da associação Príncipe + Real, preocupada em tornar esta zona da cidade num lugar mais agradável, familiar e seguro. “Todos sabemos que o Rato é um problema por resolver, uma zona difícil, pouco segura, inundada de carros e de autocarros, em três níveis diferentes, o que retira capacidade de controlo ao peão”, diz Patrícia Luz, da associação. No entanto, como mexer no largo é uma “questão sobretudo técnica, que envolve muitos constrangimentos”, convidar a CML a participar na conversa foi uma inevitabilidade. “Foram muito receptivos desde o início, mas também explicaram que estão no ponto zero quanto ao Largo do Rato.” 

A extensão da Linha Vermelha do metro, cuja inauguração está prevista para 2026, também obriga a pensar de novo este lugar. “Haverá ainda mais pessoas a circular e por isso o espaço para o peão vai tornar-se ainda mais insuficiente”, argumenta Ariana Marques da Silva. Mestre em Urbanismo Sustentável e Ordenamento do Território pela Universidade Nova de Lisboa, a arquitecta juntou-se a João Pratas e Rui Gorgueira, durante o mestrado, para desenhar uma solução para o Rato. “Os professores só perguntavam: o Rato? Têm a certeza?”, conta Ariana. Escavaram um túnel entre a Álvares Cabral e o início da Braancamp, tornando-o a única via para transporte individual que permitiria atravessar o largo (as restantes tornar-se-iam para trânsito local). Haveria também uma estação intermodal, com apeadeiro de comboio no Auto Palace (já que aí existe um respirador do túnel ferroviário que estabelece a ligação Rossio-Campolide), e um silo para automóveis e bicicletas partilhadas junto à entrada para a A5. “Seria um processo faseado. Não se pode começar logo com um túnel. É preciso, primeiro, reestruturar e robustecer a rede de transportes públicos. Mas este seria um cenário para daqui a 20 anos”, explica a arquitecta. 

Projecto de mestrado para o Largo do Rato
DRProjecto de mestrado para o Largo do Rato

“Criando-se o túnel, libertamos a parte superior”, permitindo a criação de uma alargada área pedonal e a plantação de árvores, medida essencial para destronar o Rato como grande “ilha de calor” e torná-lo na charneira de uma rede verde e azul, do Jardim Botânico ao Príncipe Real, continua João Pratas. Por fim, a água que tanto marca este local (a Mãe d’Água das Amoreiras é mesmo ao lado) passaria a estar visível e a poder ser usada pelos cidadãos, em bebedouros, jogos lúdicos e na reabilitação do Chafariz do Largo do Rato. “A água como um bem comum, como Paris está a fazer”, frisa. No lado sul, ficariam as esplanadas e, na cota mais alta, haveria um miradouro virado para a Basílica da Estrela, “numa zona intimista e arborizada”. 

Arrojado? “Quando apresentámos a proposta disseram que era utópica, mas o que se faz sem utopia?”, pergunta Ariana Marques da Silva, sobre o projecto que, em 2022, foi apresentado no ciclo “UniverCidades: Ideias para Lisboa”, organizado pelo Centro de Informação Urbana de Lisboa, da CML. 

Menos carros? Não há alternativa

Estando o Rato “bloqueado” há décadas, os arquitectos acreditam que só a pressão pública poderá ditar um futuro promissor para este largo. “Se houver força pública, a política terá de ir atrás”, defende João Pratas. E “é importante trazer à discussão opções menos óbvias, tornar os decisores aptos a mudanças radicais, como retirar carros da estrada”, complementa Ariana.

Diminuir o número de automóveis é a mais consensual das mudanças quando se pensa na cidade, mesmo a curto prazo. “Não estamos numa altura em que possa fazer outra coisa. Apostar em eléctricos e autocarros é uma das chaves para o Largo do Rato”, diz Carlos Gaivoto, especialista em transportes, há quase 50 anos na Carris, que vê neste ponto da cidade uma necessidade de mudança com muitas possibilidades à vista. “Em última análise, podemos ser radicais e transformar o Rato numa área completamente pedonal, com esplanadas, árvores, um jardim…” Mas há formas mais suaves de intervir. “Incompreensível” é que o Largo do Rato esteja “assim há mais de 30 anos, até do ponto de vista económico, tendo em conta os custos com a saúde, ambiente ou combustíveis”, alega o engenheiro. 

Para Carlos Gaivoto, as ruas de São Bento e da Escola Politécnica são, hoje, duas grandes fontes de conflito no Rato, “porque atraem muito do tráfego de atravessamento com origem nas avenidas D. João V e Álvares Cabral e na Rua Alexandre Herculano. Se a Politécnica continua com o tráfego actual até ao Cais do Sodré, onde tudo é permitido, torna-se muito difícil melhorar a circulação no Rato. Para resolver isso, tem de se fechar essas duas torneiras, restringir o uso do automóvel, que ocupa, claramente, um lugar exagerado”, diagnostica o especialista. 

A proposta é, por isso, “reduzir em 50% o trânsito no Largo do Rato, num plano de transição, para depois desenvolvê-lo para um uso progressivamente mais do peão e das mobilidades colectiva e suave”, sugere Carlos Gaivoto. Assim, o trânsito realizado em transporte individual seria reduzido para o uso de quatro vias, duas em cada sentido, ficando a zona sul reservada a autocarros e eléctricos. Na Rua da Escola Politécnica também circulariam apenas transportes colectivos, tal como na Rua de São Bento. E depois? “É preciso decidir com base em resultados a cinco ou dez anos”, além de mudar alguns aspectos estruturais do sistema de transportes. Como lembra o ex-director da extinta Autoridade Metropolitana de Transportes de Lisboa, “a Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres é de 1990”. “É preciso mexer nisso. E é preciso ter uma autoridade dos transportes independente e contar, nos diferentes processos, com a participação dos cidadãos.”

Um nervo que liga diferentes municípios

Talvez não se consiga resolver o Rato sem "apostar no transporte colectivo em sítio próprio em toda a Área Metropolitana de Lisboa (AML), para reduzir a pressão automóvel no centro”, como sublinha Carlos Gaivoto. Defensor da mesma premissa é João Rafael Santos, coordenador do projecto de investigação MetroPublicNet, que se debruça desde 2021 sobre a requalificação do espaço público (mobilidade incluída) na AML. Quando o também professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa olha para o Rato, aliás, é como se utilizasse uma lente grande angular. “Os espaços públicos não terminam nas fronteiras dos municípios e o Rato é um nó de uma rede alargada, um ponto de charneira entre os eixos central e ocidental da cidade, que depois também dá ligação à A5. Isso, inevitavelmente, cria congestionamento.” Mas a falta de fluidez acontece, em grande parte, porque “esta zona da AML está muito mal servida ao nível de transportes colectivos”, denuncia. Com a chegada da Linha Vermelha ao Rato e a Alcântara, alivia-se a pressão central, “mas a ligação metropolitana vai continuar a ser difícil”, sublinha o professor, que pergunta: “Será que não se poderia voltar a estudar uma ligação de comboio?” 

Ao mesmo tempo, é preciso tomar decisões políticas consideradas impopulares. João Rafael Santos exemplifica duas: tornar o estacionamento mais difícil e reduzir as faixas de rodagem destinadas ao automóvel. “Não é estar contra os automóveis, mas encontrar espaço para outras necessidades. Cada vez é mais consensual que temos de dar prioridade a modos colectivos e activos de mobilidade e, nesta altura, já podemos isentar os políticos dessa responsabilidade”, porque dar espaço ao peão e à bicicleta não será recordado como uma medida de um determinado executivo, mas como uma mudança global.

Última pergunta: retirar espaço aos automóveis não vai aumentar o congestionamento? “Numa primeira fase, sim. Mas a cidade é um organismo vivo, adapta-se”, responde o professor, refrescando a memória com um exemplo do passado recente: “A Duque d’Ávila, que era uma avenida muito dura, foi pioneira na redução das faixas de rodagem, e isso aconteceu, curiosamente, por causa da extensão da Linha Vermelha até ao Saldanha. Hoje é uma avenida impecável.” No Largo do Rato, tanto as decisões como as empreitadas poderão ser mais complexas. “Mexer no Rato é como fazer uma operação ao coração”, compara João Rafael Santos. E com o coração em falência, o resto não funciona.

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