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Quem está à nossa frente, em palco, é incerto. É uma voz, uma fala? É uma mulher, são várias, são todas as mulheres? É a própria Isadora Duncan através de Rita Lello? Ou será o inverso? “Essa é a pergunta que faço a mim própria e que ainda não sei responder”, diz a actriz, que vai interpretar a histórica bailarina norte-americana num espectáculo em cena no São Luiz, na Sala Mário Viegas, entre 31 de Maio e 9 de Junho. “Quem é a pessoa que está ali? Não sou eu sempre. Há coisas que acontecem que não têm a ver com a minha sensibilidade. Tem a ver com a sensibilidade da Isadora: determinadas posições, determinados gestos, até determinadas escolhas cénicas, que eu não escolheria assim.”
Isadora, Fala! é um monólogo que decorre a grande velocidade e “há muitos momentos que são uma espécie de delírio”. “Isto é uma espécie de comboio em que entro e só saio no fim da viagem. Há bocado estava ali atrás e pensei: eh pá, já estou aqui. Passou-me assim atrás da cabeça”, revela Rita Lello, no final de um ensaio, em Chelas. O texto é imparável, o movimento constante. Pode parecer extenuante, mas a actriz garante que é exactamente ao contrário: “É energizante.” E isso tem a ver com a personagem. “Se calhar, sim. Ela era eufórica e, com o ritmo que o espectáculo tem, eu estou eufórica. Provavelmente pelo ritmo cardíaco, pelo ritmo respiratório, pelo ritmo do próprio texto, por tudo, é energizante, é vital. Fomos nós que impusemos [este ritmo], ninguém me obrigou a fazer isto assim [risos].”
O espectáculo nasceu com Eugénia Vasques, professora jubilada da Escola Superior de Teatro e Cinema e crítica de teatro, a sugerir a Rita Lello que lesse Jogo sensual no chão do peito (2020), em que a poeta Graça Pires encena a voz de Isadora Duncan. Foi logo após Resto Zero, poema cénico de José Watanabe a partir de Antígona que a actriz fez em 2018. “No seguimento desse espectáculo, que foi exactamente antes da pandemia, a professora Eugénia disse-me: há este livro da Graça Pires, que é um poema dramático, à volta de uma personagem. Lê e vê se não achas que se poderia fazer um espectáculo interessante a partir disto. Li. Depois a pandemia ajudou a ter tempo para aprofundar. Desafiei imediatamente a professora Eugénia para fazer a dramaturgia comigo. Como ela aceitou, tive coragem para me meter nisto.”
Rita Lello pouco conhecia de Isadora Duncan (1877-1927). “O que sabia tinha sido o que a minha avó me tinha falado dela”, recorda. “Ela falava sempre com muita admiração e com muito respeito. A minha avó era uma mulher muito inteligente, jornalista [Maria Carlota Álvares Guerra, co-fundadora da revista Crónica Feminina]. E sempre me habituei a ouvir falar da Isadora assim. Embora à volta as pessoas se referissem a ela como se fosse meio doida.” E não era só porque estava a reinventar os pressupostos da dança para o próximo século. “É uma questão política, francamente. Era uma pessoa de esquerda e foi vítima de uma propaganda brutal norte-americana, que a desacreditou e que fez com que os últimos anos da vida dela fossem um inferno. Ela fala disso em alguns textos.”
Constantin Stanislavski, criador do famoso “método” para actores, escreveu sobre Isadora, sobre a experiência de assistir aos seus espectáculos, quando a bailarina e coreógrafa se mudou para este lado do Atlântico, para a Europa Ocidental e para a União Soviética. A sua influência na época teve impacto em poetas, pintores, fotógrafos, em artistas de renome como Rodin, D’Annunzio, observa Rita Lello. “Uma mulher nos anos 1920”, sublinha. “Aparentemente a gente pensa ‘Ah, é uma época muito livre’, mas era livre para aqueles que corriam à frente do caminho. Para os outros, para a sociedade em si, estas pessoas foram martirizadas. Foram grandes corajosos que abriram caminho para a nossa liberdade.”
Deixando claro que a peça “não é historicista, é um espaço poético de onde desapareceram os nomes e os lugares”, Rita Lello nota que “não é à toa que o espectáculo se chama ‘Fala!’. Tem a ver com o lugar de fala, com a liberdade de expressão.” É preciso falar, até porque nem 100 anos foram suficientes para dar resposta às reivindicações de Isadora. “O que acho extraordinário é que grande parte das coisas que a Isadora diz ainda não estão cumpridas. Os discursos que hoje vemos nos comunistas, na comunidade LGBT, etc. Até a forma como ela fala do parto, a forma como a medicina olha para o parto. Ainda hoje há mulheres que passam 36 horas a parir. Se fossem os homens que parissem, já ninguém nascia de parto natural, era tudo cesarianas”, provoca a actriz. “O que é que a Isadora tem para dizer hoje? Tudo. Tudo aquilo de que a Isadora fala – a emancipação da mulher, os direitos da mulher, a escravidão pelo casamento, o patriarcado, o body shaming – são as questões que estão na ordem do dia. Até a relação assumida com uma mulher.”
Outra coisa que Isadora dizia era: “Uso o meu corpo como um meio, tal como o escritor usa as suas palavras. Não me chamem bailarina”. “Quando li esta frase, pensei: e se a gente fosse buscar a língua gestual para usar o meu corpo como o escritor usa a palavra?” Pensou e fez. Rita Lello pediu a uma intérprete de língua gestual portuguesa que traduzisse os textos de Graça Pires (“o poema todo na íntegra, antes de fazer a selecção dos excertos”), que os gravou em vídeo. “Depois eu e a Amélia [Bentes, coreógrafa que trabalhou o movimento da peça] analisámos cada poema e os gestos que usamos aqui são os gestos que coreograficamente e espacialmente nos pareceram mais interessantes, relacionados com cada excerto que está a ser dito”, explica. “Olhámos para os poemas em língua gestual como se eles fossem movimento e não palavra.” Esses movimentos nascem de poses clássicas de Isadora, ou misturam-se com elas, para logo se expandirem pelo palco.
“Não há aqui um movimento naturalista, digamos assim. Não há um movimento que traduza uma acção. Aquela coisa do teatro dramático em que o intérprete representa uma acção em cena. São tudo gestos deslocados do quotidiano, do naturalismo. Isso era uma das minhas propostas neste projecto. Por isso é que também a língua gestual é usada como base, para ajudar a fugir ao quotidiano”, continua Rita Lello. “Este processo foi muito engraçado. Ir à procura de um movimento que não é dança, mas que honra o movimento, o espaço que a Isadora criou. Se ela não tivesse existido, não sei onde estaríamos na dança contemporânea. A gente diz sempre: ah, tinha havido outra. Pois tinha. Mas foi ela. Porque foi de facto a primeira. As outras que havia na altura dela não eram assim. O que faziam não eram as ideias programáticas que ainda hoje a dança contemporânea reclama: o espaço de harmonia, de liberdade, de libertação do corpo, o acaso, o encontro da fluidez do movimento, a partitura sem prisões rígidas, mas que deixa entrar a inspiração do artista.”
Quem está à nossa frente, em palco? De certa forma, está sempre Isadora Duncan, mesmo quando não a reconhecemos. “Se este espectáculo servir para que as pessoas tenham curiosidade de saber quem foi este ser para além de uma maluca que morreu enforcada numa echarpe [enrolada na roda de um carro], eu já fico muito contente”, conclui Rita Lello.
São Luiz – Teatro Municipal (Sala Mário Viegas). 31 Mai-9 Jun. Qua-Sáb 19.30, Dom 16.00. 12€
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