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Uma peça de teatro para quem gosta de se armar em macaco

‘2:22 Uma História de Fantasmas’ é um thriller sobrenatural que faz carreira no West End e promoveu a estreia de Lily Allen como actriz. Chega agora ao Teatro Villaret, encenado por um apaixonado pelo género do terror: Michel Simeão.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
2:22 Uma História de Fantasmas
Joana Linda/Força de ProduçãoPedro Laginha como Samuel em ‘2:22 Uma História de Fantasmas’
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Joana e Samuel acabaram de ser pais e de se mudarem para um antigo bairro popular de Lisboa. Compraram a casa a uma viúva, que os obrigou a prometer que cuidariam da casa onde passou toda a vida e onde a memória do marido estava por todo o lado, da arrecadação das ferramentas aos armários que ele próprio tinha construído. Não foi o que fizeram. Mal a viram pelas costas, remodelaram o sítio de cima a baixo. Agora, ela ouve passos no quarto da bebé, sempre à mesma hora da madrugada, a cirandar à volta do berço. Acha que a casa está assombrada. Ele ri-se. Haverá com certeza uma explicação: o soalho, os canos velhos, uma reverberação de uma casa vizinha. Não existem fantasmas.

Ou talvez existam, quem sabe. Em 2:22 Uma História de Fantasmas, que se estreia no Teatro Villaret esta quinta-feira, 14 de Setembro, a dúvida vai ganhando espaço. Joana (Ana Cloe) está assustada, Samuel (Pedro Laginha) diz-lhe que são bichos da sua cabeça, resquícios de crenças religiosas de outrora que ele gostaria de acreditar que haviam sido expurgadas. Quando os conhecemos, ele acabou de chegar de uma viagem aos Açores dedicada à astronomia; a mulher ficou com a filha. Falam. Aflora-se a questão do baptismo. Há um terço que a avó recuperou da infância da mãe, para dar à neta. Samuel nem quer ouvir falar disso. A ciência é o seu único guia. Sabemos de antemão, no entanto, que estamos perante um thriller sobrenatural. É provável que Samuel venha a cair da cadeira…

Escrito por Danny Robins, Uma História de Fantasmas subiu pela primeira vez ao palco em 2021, no West End londrino. A cantora Lily Allen estreou-se aí como actriz, o que lhe valeu uma nomeação para um prémio Laurence Olivier. A produção foi nomeada na categoria de melhor nova peça. Não ganharam, mas a crítica gostou e o público também: vai na quinta temporada. O sucesso levou-o também a galgar o Canal da Mancha. Já chegou aos EUA, à Austrália, a Singapura e à Chéquia. Sandra Faria, dona da Força de Produção, assistiu à peça em Londres. No regresso, desafiou Michel Simeão a encená-la por cá. Este apanhou o avião e foi ver pelos seus próprios olhos. “Identifiquei-me com o texto”, recorda.

O encenador diz ter achado a proposta “engraçada”. “Seria uma forma de fazer um bocadinho de sobrenatural, não diria terror, que é uma coisa que quero muito.” Habituado ao género, Simeão afirma que “isto não é bem terror, mas é já uma tentativa de tentar fazer terror em palco, que é difícil”. “É uma das coisas que eu gostava muito de um dia vir a fazer, escrever um original meu para palco, de terror. Assim, numa sala de formato comercial, digamos. Mas isto já é uma abordagem interessante dentro do thriller sobrenatural”, garante. “Quando me convidou, a Sandra disse-me que não queria fazer terror. E eu já sabia o que podia [fazer]”, conta, reconhecendo que os seus “conteúdos são bastante mais pesados” do que aquele que agora veremos (que até inclui momentos de comédia).

2:22 Uma História de Fantasmas
Joana Linda/Força de ProduçãoJoana Seixas, João Jesus e Ana Cloe

A forma que encontrou para pôr os espectadores em alerta foi tornar tudo tão realista quanto possível, para os aproximar das personagens. “Eu fujo muito do texto declamado mais palaciano, mais teatral – que tem um espaço, é óbvio, e ainda bem que existe. Mas a forma como gosto de trabalhar, aquilo que tem sido mais a minha expressão, é exactamente a verdade, o realismo, o texto oral. Por isso é que gosto muito de fazer as coisas que escrevo. E este texto tinha esta oralidade toda, que me interessava muito trabalhar”, observa. Isso implicou mexer no original, que foi traduzido e adaptado por Ana Sampaio e revisto por Simeão. “A versão em inglês é mais extrapolada. Eu gosto de uma zona mais contida, mais realista. Uma aproximação à realidade o mais possível dentro de um palco. Para envolver emocionalmente o espectador. Quanto mais próximo estiver de uma emoção real, mais facilmente vou conseguir impactar o espectador.” O texto de Robins “é um bocadinho mais denso, mais mastigado”. “E nós fizemos um trabalho de edição de algumas partes, para ele ganhar um bocadinho mais de ritmo.” As limitações técnicas e orçamentais, por comparação com o West End, também moldaram essa adaptação, inevitavelmente.

A peça vai ter uma carreira longa no Villaret: estará em cena até 30 de Dezembro. São três meses em que Joana e Samuel vão uma e outra vez receber as suas primeiras visitas naquela casa gentrificada situada nas imediações de Monsanto: uma amiga de longa data, Laura (Joana Seixas), e o seu novo namorado, Quim (João Jesus), um construtor civil que conheceu quando este lhe foi renovar a casa de banho. É com os três que Samuel vai argumentar incansavelmente que os fantasmas não existem, fazendo uso do seu cérebro de macaco. É o próprio que o define assim: no seu interminável rol de factos e curiosidades, faz referência à teoria do cérebro trino, que defende que os humanos têm três “cérebros”: o mais primitivo de todos, o de “lagarto”, vocacionado para a sobrevivência (e que ele diz que está a toldar a sua companhia assustada); o cérebro emocional, que se desenvolveu com os mamíferos; e o cérebro de “macaco”, que tem a razão a seu cargo. O estado da arte da neurociência já considera esta teoria obsoleta, algo de que Samuel, o grande intelectual do grupo, parece ignorar. Isto diz-nos uma coisa: as suas certezas não são à prova de bala.

Teatro Villaret (Lisboa). 14 Set-30 Dez. Qui-Sáb 21.00, Dom 17.00. 20€

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