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Nunca é tarde para recordar. E em tempos de notícias falsas no mundo digital, é reforçada a importância dos mais diversos documentos físicos que não ficam apenas para a história. Para compreender o presente é preciso conhecer o passado e, com a ajuda do arquivo da Associação Ephemera, que forneceu cerca de 90% da documentação exposta – e que está sempre em movimento graças ao papel do historiador José Pacheco Pereira –, nasceu uma exposição dedicada ao movimento sindical e à luta dos trabalhadores compreendida entre os anos de 1968 e 1974, os anos do governo de Marcello Caetano. Um contexto social que de certa forma alcatroou o caminho para a revolução de 1974, empurrada na altura pelo descontentamento militar e popular em relação à Guerra Colonial.
“Unidos Venceremos! Protesto, Greves e Sindicatos no Marcelismo”, que inaugura a 1 de Maio e se estende até final de Junho, é uma exposição, sim, mas ocupa dois espaços separados por um rio: o Hub Criativo do Beato (a antiga Manutenção Militar), onde estará em destaque o impacto dos sindicatos; e as Oficinas da CP no Barreiro, onde se conta a história do impacto do movimento operário durante esses últimos anos do Estado Novo. É uma iniciativa da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril e da Ephemera – Associação Cultural, em parceria com a Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, o Arquivo Nacional do Som, a CP – Comboios de Portugal, e as autarquias de Lisboa e do Barreiro.
Ao longo da exposição, ou exposições, os visitantes poderão ver documentação inédita sobre os vários mecanismos de repressão na fase final da ditadura. Durante o período marcelista, registaram-se mais de 300 protestos e greves, graças a "pessoas muito corajosas que, porque punham em causa a sua liberdade, a sua família e o seu emprego", como disse Pacheco Pereira numa visita guiada à imprensa esta sexta-feira, arriscavam ser presas e torturadas por se manifestarem contra as regras do regime de então. Nesta exposição, são retratados dois períodos. Esse primeiro “movimento que surgiu das esperanças e das ilusões com a ascensão de Marcello Caetano ao poder” e, após 1971, um período de repressão em muitos casos mais duro do que a repressão que havia sobre os sindicatos, e “que precede a queda da ditadura em 1974”.
“O ano de 1968 é muito importante na história da fase final da ditadura. Entre 68 e 74, [vemos] muito daquilo que condicionou o 25 de Abril, que é um movimento militar, mas é um movimento militar que depende muito do contexto da época, da ecologia da época”, começa por explicar Pacheco Pereira. É o caso do movimento estudantil, impulsionado por estudantes que “vinham de famílias com algumas posses”, mas também por militares que frequentavam a universidade, assim como mudanças significativas na política a nível internacional, da Guerra do Vietname, a invasão da Checoslováquia ou o Maio de 68 em França. “Mesmo antes de o Salazar cair da cadeira e ser substituído por Marcello Caetano já havia um ambiente diferente.”
Mas foi precisamente em 1968 que caiu Salazar, sendo substituído por Marcello Caetano. Na altura, falava-se de uma Primavera Marcelista e Portugal chegou a alimentar a esperança. “Não podemos menosprezar o papel da esperança, esperança de que as coisas mudassem; ilusões de que elas poderiam mudar… e estes factores acabaram por influenciar muita movimentação, quer espontânea, quer organizada”, recorda o historiador, que faz um retrato da época e do que mobilizava os trabalhadores a organizarem-se em sindicatos, ainda que ilegais. “Muitas delas eram pessoas para quem era sensível a situação económica e social. Não se esqueçam que em 1967 choveu muito e a maioria da chuva caiu em Cascais. Não há um morto em Cascais. Menos chuva caiu nesta zona ribeirinha e ainda hoje não se sabe quantas pessoas morreram. Provavelmente mais de 700. Estamos perante um país muito pobre, muito atrasado, com elevado analfabetismo, elevada mortalidade infantil, completamente diferente do país de hoje.”
Antes da revolução de Abril, havia sindicatos legalizados, mas estavam de mãos dadas com o regime. “O Estatuto do Trabalho Nacional [implementado em 1933] e as medidas repressivas contra os sindicatos fizeram substituir os sindicatos de influência sindicalista revolucionária por sindicatos corporativos. O que vamos assistir neste período é a luta de operários, bancários, trabalhadores do comércio, escritório, têxteis e metalúrgicos, contra os sindicatos corporativos, que eram um braço do regime. Quando o Salazar queria fazer uma manifestação de massas, ia aos sindicatos para garantir que eles lá estivessem com as bandeirinhas”, explica o historiador. E a greve era proibida.
O papel das mulheres no trabalho é outro dos tópicos em destaque na exposição, numa altura em que muitas mulheres arregaçavam as mangas para trabalhar na indústria, como na têxtil por exemplo, e ajudar a sustentar as famílias. Em particular as mulheres de condições sociais mais baixas que tinham os maridos emigrados ou na guerra. Mas se hoje ainda se luta pelos direitos das mulheres, na altura a realidade era bem mais sinistra, como conta Pacheco Pereira. “Há duas coisas que temos de ter em conta. O assédio sexual é tão norma que não é referido de um modo geral. E a violência doméstica é igualmente tão norma que na prática não era referido. A condição feminina passava quase que inevitavelmente pela violência sexual e doméstica. Era a regra”, lamenta.
Nesta exposição, também são abordados os direitos das crianças que, antes do 25 de Abril, “não tinham visibilidade”. A mortalidade infantil em Portugal, em 1974, é pior do que em muitos países africanos. E é bom que se veja isso, porque há muitas vezes uma tentativa de dourar a ditadura com números sobre o crescimento económico. Claro que houve crescimento económico, em grande parte resultado da exploração das colónias, que era um factor relevante desse crescimento. O país era pobre, atrasado, repressivo e um país que não tinha nada a ver com as realidades da maioria dos outros países europeus”, e onde a censura controlava toda a opinião. Um país onde “havia campanhas contra o pé descalço”, quando muitos portugueses não tinham dinheiro para comprar sapatos.
‘Unidos Venceremos! Protesto, Greves e Sindicatos no Marcelismo’ está de porta aberta até 30 de Junho e contará com um programa de dinamização que inclui visitas guiadas, leituras de livros infantis e conversas.
Hub Criativo do Beato. Antiga Confeitaria da Manutenção Militar. Travessa do Grilo, 1 e Av. D. Henrique, 145. Ter-Dom 13.00-19.00/ CP – Oficinas do Barreiro. Avenida Batalhão de Sapadores do Sul e Sueste. Seg-Sex 10.00-16.00, Sáb-Dom 15.00-19.00. De 1 de Maio a 30 de Junho. Entrada livre.
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