[title]
Só há uma ocasião em que o fumo se tolera: quando há comida. Mesmo assim, nem sempre – o cheiro cola-se à roupa (e a nós). No Chefs on Fire, o festival gastronómico dedicado à cozinha de fogo que acontece no Estoril desde 2018, não há fumo ou cheiro que atrapalhe. Pelo contrário, faz parte da mística, atrai. Sim, vai sair da Fiartil – Feira de Artesanato do Estoril a cheirar a churrasco, mas não é disso que vai querer falar quando tudo acabar. Será dos pratos de que mais gostou, dos chefs que descobriu e dos concertos que viu. Em três edições, o Chefs on Fire tornou-se paragem obrigatória de foodies, e também daqueles que apreciam um bom festival. O campeonato não é o mesmo de um NOS Alive ou de um Vodafone Paredes de Coura, mas nem por isso o público é muito diferente. Gonçalo Castel-Branco sabe disso, bebeu dessas referências, trocou as prioridades e criou “um festival de comida que tivesse música, em vez de um festival de música que tivesse comida”. Os chefs, numa mescla de novos talentos, caras da televisão e estrelas Michelin, são os verdadeiros cabeças de cartaz. A música, igualmente escolhida a dedo, um complemento. A cada ano, supera-se o anterior. E já se prepara a primeira edição fora de Portugal.
“2022 vai ser o melhor ano do festival por duas razões: as coisas que decidimos manter e as coisas que decidimos alterar.” Parece quase uma piada, mas é assim que Gonçalo fala. É desprendido, sem grandes filtros, com a segurança de quem descobriu um filão, sabendo que não inventou a roda. E não vacila, nem deixa vacilar. É ele o homem do leme da LOHAD (Land Of Hope And Dreams), a empresa que promete cumprir esperanças e sonhos, responsável pelo Chefs on Fire, mas também por projectos únicos, como o The Presidential, que recuperou o comboio presidencial, de 1890, e o devolveu aos carris da Linha do Douro numa viagem com chefs Michelin a bordo.
É para os 28 chefs que compõem o cartaz do Chefs on Fire deste ano, que acontece nos dias 17 e 18 de Setembro, que Gonçalo fala num almoço descontraído em jeito de reunião no Club BBQ, na Terrugem, em Sintra. Há fogo, fumo, música e muita galhofa, como se de uma grande churrascada de família se tratasse. Cozinha-se de um lado e do outro, passam-se pratos, trocam-se dicas, trinca-se aqui e ali e dá-se uma mão, sem nunca se desviar o olhar da brasa. Estamos em Junho, no arranque do mês, e já todos sabem o que vão fazer no festival. É também por isso que aqui se encontram: cada um vem cozinhar o seu prato para que possa ser fotografado.
Ao contrário do que tem acontecido, este ano cada chef vai preparar apenas um prato (carne, peixe ou vegetariano). “Até agora cada um tinha de fazer duas coisas. É muito mais violento para vocês. Vamos simplificar a operação dos chefs e tentar ao máximo que se foquem num prato”, diz aos chefs. Para Gonçalo, o objectivo é proporcionar “uma experiência fixe e divertida” para todos, não só para quem paga bilhete, mas para quem ali está a domar o lume. “Isto é um evento que se for mal produzido pode ser violentíssimo para quem está a cozinhar e nós queremos mesmo que vocês saiam daqui a dizer que foi uma coisa que vos deu pica e que não vos deu pesadelos”, continua. “Lembro-me que o João Rodrigues teve dois anos seguidos em que acabava a dizer: ‘Não me convides mais que eu já não aguento. Está cá outra vez. À partida esqueceu-se, mas o objectivo é que este ano ele acabe a dizer que assim vale a pena”, acrescenta, para risada geral, incluindo do próprio chef, que em Maio abandonou o Feitoria.
Assim, no dia 17, a carne fica a cargo de Alexandre Silva (LOCO), Vasco Coelho Santos (Euskalduna Studio), Rodrigo Castelo (Ó Balcão), Louise Bourrat (Boubou’s) e da tripla Jennifer Duke, Anh Dao Nguyen e João Magalhães (Tricky’s). Já o peixe fica nas mãos de João Oliveira (Vista), Lucas Azevedo (Praia no Parque), Kiko Carvalho (A Cevicheria) e Nikita Polido (Celmar). Nuno Castro (Fava Tonka), Bruno Caseiro (Cavalariça) e Alana Mostachio (VDB Bistronomie) ficam com os pratos vegetarianos. Nos doces, estão Márcio Baltazar (Ocean) e Jüliana Penteado (Jüliana Penteado Pastry).
No segundo dia, Henrique Sá Pessoa (Alma), Maurício Ghiglione (Belos Aires), Bruno Rocha (Bairro Alto Hotel), Hugo Brito (Boi-Cavalo) e Marcella Ghirelli (Cella Door) tratam da carne, enquanto João Rodrigues, Noélia Jerónimo (Noélia e Jerónimo), Pedro Almeida (Midori) e Tiago Penão (Kappo) ficam responsáveis pelos pratos de peixe. O menu vegetariano fica a cargo de David Jesus (Seiva), Vítor Adão (Plano) e Ana Leão (Musa) e as sobremesas são assinadas por Carlos Fernandes (Azor Hotel) e Leonor Sousa Bastos (Flagrante Delícia). Manuel Liebaut, até muito recentemente chef executivo do FOGO de Alexandre Silva, é o chef executivo do festival, ou “o garante da operação toda”, como define Gonçalo à Time Out. “A minha interacção com os chefs acaba por ser muito tangencial. Eu escolho-os e a partir daí sou irrelevante. É o Manel que fala com eles, que lhes dá condições, estrutura. Vê o que precisam, protege-os, aconselha-os, vê os menus”, explica.
“Nós temos uma metodologia muito particular. Somos completamente horizontais na criação e verticais na implementação. Ou seja, quando estamos a criar, da empregada de limpeza ao CEO, toda a gente tem o mesmo peso. Se a empregada de limpeza disser que foi, por exemplo, ao Da Noi e não gostou, ela é ouvida e levada a sério.” Todas as semanas, há mesmo um sítio novo para descobrir em equipa. “E o objectivo é exactamente eles terem oportunidade de experimentar o máximo de coisas e construírem palato, gosto pessoal. Estás no mercado em que tentas dizer aos clientes o que é bom e o que é mau, mas se tens uma equipa inteira que não tem oportunidade de experimentar isso no seu dia a dia não faz muito sentido”, explica.
O cartaz faz-se dessas experiências, mas também de muitas sugestões e conversas. “Chovem recomendações e os próprios chefs e restaurantes chegam-se à frente e eu gosto muito disso”, conta. “Ter uma equipa boa, ter um chef executivo como o Manel, tudo isto ajuda, mas depois no fim do dia há aqui decisões que são pessoais.” É preciso, diz, ter em conta o momento que o chef vive, avaliar se “um empurrão vai ajudar ou fazer o contrário”. “Já tive momentos em que senti que dei oportunidade cedo demais e prejudiquei o chef. Fiz-lhe um mau serviço e isto não tem a ver com talento. À partida se não tens talento não estás no Chefs on Fire. Tem a ver com organização, operação, com experiência e capacidade de fogo.”
Para prevenir, há uma novidade no cartaz deste ano, a categoria “rising star”, que aponta à nova geração. É lá que aparecem Nikita Polido, Alana Mostachio, Marcela Ghirelli ou Tiago Penão. “Os rising star têm menos doses e por isso menos pressão. Obriga também a menos equipa, menos organização, menos tudo. Há chefs que têm quatro restaurantes e uma estrutura, há chefs que não têm restaurante nenhum ou têm um com três funcionários.” O facto de grande parte das mulheres desta edição, que estão em maior número relativamente aos anos anteriores, estarem nesta categoria é uma coincidência. Ou antes, uma consequência. Um reflexo do mercado. “Eu não tenho a mínima dúvida de que há pessoas que agora estão no Rising Star que daqui a um ano ou dois vão estar num slot grande”, atesta Gonçalo. “Eu sou um feminista, mas é muito fácil ser um feminista de sofá. Eu dizer-te que acordo todas as manhãs a pensar como posso pôr mais mulheres no festival, sozinho sem ninguém, é mentira. Eu tenho mulheres à minha volta a dizer-me: ‘Olha, não achas que…?’”
O mesmo acontece no que à diversidade diz respeito. Ou à falta dela, numa provocação nossa. “Do ponto de vista do género somos uma força claramente do bem, do ponto de vista da representatividade, somos cada vez mais”, justifica. “A representatividade na gastronomia portuguesa não começa com o Chefs on Fire. O problema é que o Chefs on Fire vem a jusante do mercado, é muito difícil. As pessoas têm que começar por um lado para eu conseguir encontrá-las”, continua Gonçalo, sempre aberto a sugestões. “Eu costumo dizer que eu não contrato um serviço, eu contrato um resultado.” O objectivo é fazer do Chefs on Fire “o melhor festival gastronómico em Portugal”.
A pressão pode parecer muita, mas não há ninguém que não saiba o seu papel nesta organização – nos dias do festival, contando com os chefs e as suas equipas, são cerca de 150 as pessoas que fazem tudo acontecer. Um ano acaba e a cabeça já está no próximo. Apontam-se as falhas, procuram-se soluções. Não é tudo perfeito. “Eu gostava de ter várias tentativas por ano, mas infelizmente eu identifico o erro e depois a solução que encontrei só vou saber no próprio dia se funciona. Se não funcionar já, só no ano a seguir é que vou corrigir. É um bocadinho frustrante nesse aspecto, mas quando somos uma empresa que tradicionalmente gosta de estar na fronteira das coisas que ninguém fez, a única maneira é ir experimentando.”
O segredo talvez seja, precisamente, a coragem de arriscar. Só isso justifica o aparecimento do Chefs on Fire em 2018, apenas um ano depois dos incêndios de Pedrógão, onde morreram 66 pessoas. Um festival que se comunica e que só funciona em torno do fogo, onde todos os pratos têm de ser cozinhados com fogo, nas suas ínfimas possibilidades, sendo o fire pit de 90 metros quadrados o maior destaque. “Tivemos receio de não ser compreendidos, mas aconteceu o oposto, também porque trabalhámos muito essa parte”, destaca Castel-Branco, lembrando que desde o início há um trabalho próximo com os Bombeiros Voluntários, para os quais foram angariando dinheiro a cada edição – já contribuíram com cerca de 6200€. “Cumprimos todas as normas e ainda vamos mais além. Por exemplo, não é preciso, mas temos sempre um veículo de combate a incêndios dentro do Chefs on Fire. Eu e a minha equipa replantamos toda a madeira que é utilizada.”
De alguma forma, o mesmo aconteceu na última edição, quando os eventos de massas não estavam praticamente a acontecer. O Chefs on Fire não só voltou, depois de não ter acontecido em 2020, como ainda ganhou um dia extra. Até então, tinha apenas um dia. “Foi mais um risco”, brinca. Mas um risco calculado, onde se foi, novamente, além do que a regulamentação pedia. Gonçalo decidiu que ninguém entrava no festival sem um teste negativo, mesmo que estivesse vacinado, criando-se uma espécie de bolha anti-covid. “Foi um balão de oxigénio num tempo estranho, uma bolha de amor – sim, até pode soar piroso, mas o número de abraços por metro quadrado não desmente”, escrevemos nós no final de 2021, quando atribuímos ao Chefs on Fire o prémio de Acontecimento do Ano.
Mas, para lá dos nossos olhos, Gonçalo sabe onde errou. E é por isso que este ano só pode ser melhor, assegura. “Perceber os limites é a dificuldade principal. Eu tomei decisões, no ano passado, que nos fizeram passar essa linha em alguns momentos.” O principal erro, conta, foi a redução do número de chefs. “O ano passado eram sete por dia, normalmente são dez e este ano vão ser 14. Foi uma decisão minha para tentar que o projecto não perdesse dinheiro num ano de covid, os riscos já eram tão altos”, aponta, sem arrependimento. “Foi a única decisão possível, mas a verdade é que nos fez passar a linha das filas e eu não quero repetir. Hoje, sabemos exactamente qual é o nosso limite, sabemos quando é que as filas deixam de ser toleráveis.”
Domar as filas é um tema complexo, até porque é impossível controlar quem se escolhe e quando, mas as três edições passadas dão pistas. As primeiras filas sentem-se nos chefs mais conhecidos. “Toda a gente quer ver o Kiko, por exemplo, mesmo que não saiba o que está a cozinhar.” Os pratos “que causam espectáculo visual” também geram curiosidade. No ano passado, Rodrigo Castelo pôs uma vaca a rodar no fogo. Este ano, “a Nikita vai fazer um espadarte inteiro”, revela Gonçalo. “Este é o padrão à hora do almoço. Depois da hora do almoço, é o passa a palavra que funciona. Um prato que é muito bom e que alguém comentou com a pessoa do lado, a malta vai toda a atrás.” Já no fim de cada concerto, também a corrida aos chefs é maior. “Sabendo esse comportamento, consegues minimizar o quanto isso pode tornar a experiência pior para quem lá está.”
Há uns segredos, como a “operação chouriço”. “Sou um desbocado, estou a dizer coisas por trás do pano”, atira Castel-Branco. “Nós temos coisas de picar, não são pratos de chef, e atacamos as filas. Enquanto estás à espera, alguém te dá alguma coisa, ou alguém te reforça o copo de vinho. Temos pequenas atenções.” A fila não desaparece, mas os mimos atenuam a espera, acredita o responsável. “Tentamos dar mais do que aquilo por que as pessoas pagaram. Tentamos fazer aos clientes aquilo que eu gostava que me fizessem a mim se eu tivesse na fila. Essa regra é a regra de ouro em tudo o que nós fazemos.”
Da mesma forma que, no ano passado, se constatou que algumas zonas de fogo provocavam fumo em zonas de espera para comer. “As únicas pessoas que têm de ficar com os olhos a arder somos nós, os clientes vamos tentar que não fiquem.”
Para isso, o espaço vai sofrer alterações. “Andámos a namorar a hipótese de mudar para um local maior, mas é muito difícil replicar a magia daquele local, aquele bosque tem ali um elemento qualquer difícil de replicar”, justifica. “A ideia do Chefs on Fire foi sempre fazer um festival muito bom para pouca gente. É um boutique festival, apenas e só porque achávamos que o truque para fazer o festival com boa comida e boa distância para o palco era não tentar vender que nem batatas fritas”, diz. Mas há dores de crescimento. “A principal é encontrar o tecto dessa visão. Até quanto é que podes crescer, mantendo esse look and feel? A tentação de fazê-lo crescer é enorme porque, quanto mais dinheiro o festival der, mais eu pago aos chefs, mais festivais faço. Não há mal nenhum em querer que aquilo corra bem, mas acho muito importante que a coisa não se descaracterize e não perca a alma.”
A solução encontrada foi aumentar o espaço do festival. Ou seja, os portões da Fiartil que até agora marcavam a entrada no Chefs on Fire vão ser abertos e a zona em frente até ao Centro de Congressos, do outro lado da estrada, passa a estar incluída. O mapa do recinto ainda não está fechado, mas o plano é pôr o palco nesta nova zona. “Vamos dar mais condições ao público para não estar encavalitado, para não estar em tantas filas e para não estar a levar com o fumo, mas vamos ficar naquele sítio porque é mágico.”
Apesar do que possa haver de indefinições, há uma certeza que Gonçalo Castel-Branco tem: mudar o palco de sítio não lhe vai tirar a intimidade. Do palco ao lugar mais distante, é tudo medido ao milímetro, conta. Não se quer ninguém demasiado longe. Dino D’Santiago, que deu um dos concertos mais marcantes da última edição, está de regresso e actua no primeiro dia com You Can’t Win, Charlie Brown, Luísa Sobral e Bateu Matou. Já no dia 18 de Setembro, sobem ao palco o Conjunto Cuca Monga, Bruno Pernadas, Carolina Deslandes, Jorge Palma e David Fonseca. “Concertos para 50 mil pessoas em que acabamos a ver o concerto por ecrãs não me dizem muito. Sou mais fã de jam sessions. Vamos continuar a lutar para fazer crescer o festival sem perder o intimismo que é o Chefs on Fire.”
Os pop-ups, que estavam prometidos desde o ano passado, são assim a forma mais natural para o festival crescer. O primeiro aconteceu a 15, 16 e 17 de Julho no Jardim do Rio, em Cacilhas. “Os pop-ups são uma forma de fazer duas coisas que para nós são importantes: chegarmos a outras cidades e darmos palco a talento novo e talento local”, aponta Gonçalo. “Quando fazemos uma experiência mais pequena, para 300 pessoas por refeição, com duas bandas e dois chefs, podemos fazer isso.” Outra forma é a internacionalização do festival, que já é certa no próximo ano. Amesterdão já está em pré-produção. Até 2024, Nova Iorque, Melbourne e São Paulo poder-se-ão seguir. “O Chefs on Fire está a crescer à sua velocidade, muito mais rápido do que nós queríamos. Com excepção do Time Out Market, é provavelmente dos poucos IPs [sigla para propriedade intelectual em inglês] de entretenimento português que ao fim de três anos está a ser exportado.” O modelo em que acontecerá ainda não está definido, mas Gonçalo não descarta um cartaz composto por chefs portugueses.
Fiartil – Feira de Artesanato do Estoril, Avenida Amaral (Cascais). 17 e 18 de Setembro, 12.00-00.00. 65€ (5 doses e 2 bebidas); 95€ (10 doses e 5 bebidas por dia); 150€ (dois dias com 10 doses e 5 bebidas por dia). Dos 6 aos 12 anos o bilhete tem o preço de 20€ (5 doses e duas bebidas)
+ Tosco: uma tasca castiça onde não faltam os sabores tradicionais
+ Cervejaria Trindade reabriu completamente diferente e com uma carta de Alexandre Silva