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Passam poucos minutos da meia-noite e já se avista movimento à porta d’A Primorosa de Alvalade. Soam ecos do clássico “Heart of Glass”, dos Blondie. A música pop e rock dos anos 60, 70 e 80 é, para os saudosistas, um convite a entrar, mas o que nos espera no interior desta casa histórica, longe das mecas da cena nocturna lisboeta, não só é razão para ficar, como motivo para voltar uma e outra vez. A arquitectura, que quase parece ter selo de Gaudí, é impressionante, e a decoração, com sofás e almofadas bonitas, que se estendem ao lounge bar anexo à pista de dança, o Cyrrose, é o avesso do que se espera das discotecas de hoje em dia, assim como o dono, Fernando Jorge, um homem discreto, que não permite ser fotografado. “Sou a antítese de um dono de uma discoteca. Nunca me embebedei na vida e nunca pus um cigarro na boca”, conta.
Foi Fernando quem fez nascer o espaço em 1966, com o nome Pope Clube (assim, à portuguesa, como era imposto pelo Estado Novo). Depois de Abril de 1974 ganhou a decoração e a denominação que hoje conhecemos. “No princípio, em 1974, havia slow, mas hoje poucos o saberiam dançar”, brinca. Em 1994 chegou a ser a discoteca africana Sarabanda, até voltar ao seu conceito original em 2017. “Apareceu o T-Club e, naquela altura, foi a solução”, conta o gerente Henrique Fidalgo, na casa há mais de 30 anos. Apenas um contratempo. “Há momentos altos e baixos, mas levo isto muito a capricho. Costumo dizer aos meus empregados que no dia em que isto me envergonhar, fecho”, diz Fernando Jorge.
Mas o fim d’A Primorosa não parece estar para breve. “A verdade é que isto consegue encher com clientes antigos. Há pessoas que vêm aqui desde o Pope Clube e que se calhar encontram cá os netos. Ainda não assisti a este espectáculo, mas estou convencido que sim”, afirma o responsável, para quem a antiguidade é um posto. “Nós preferimos ter sempre clientes que tenham algum historial da casa porque as pessoas vêm sempre à procura do serviço, da segurança e da confiança que a casa lhes dá”, explica Henrique Fidalgo.
N’A Primorosa, por onde passaram nomes como Simone de Oliveira, Raúl Solnado ou Jô Soares, não faltam histórias para contar, mas o segredo é a alma do negócio. “Eu poderia escrever um livro, mas ia entrar na indiscrição. Acho que é pouco educado e não o devo fazer. Mas que tenho histórias daqui? Sim. Com figuras públicas? Sim. Mas é a vida deles”, justifica Fernando.
O 2001 – Catedral do Rock (nome inspirado no filme 2001: Odisseia no Espaço), no Autódromo do Estoril, aberto desde 1973 por Otávio Manuel Araújo (também dono do Van Gogo, em Cascais, de 1964 a 1994), também sobrevive de clientes fiéis. “Temos clientes que vêm cá há 30 anos, todos os fins de semana. Acho que é uma maneira de se voltarem a sentir adolescentes. A média de idades aqui deve ser 55 anos, mas também começamos a ter pessoas mais novas”, diz o actual dono, Gonçalo Araújo, que herdou o negócio do pai em 2017.
Gonçalo ainda guarda os vinis de artistas como James Brown e Bob Marley dos inícios do 2001. “Coisas impensáveis de passar aqui hoje em dia”, já que a discoteca rapidamente se virou para o rock, tendo lançado, no início dos anos 2000, três CDs – um deles duplo disco de platina. O espaço pouco se alterou. É, aliás, um dos poucos sítios onde ainda se pode pedir uma cerveja em garrafa de vidro. “É uma clientela exigente, que vem cá há muitos anos, e que é pouco tolerante a mudanças”, assegura. Porém, a afluência no 2001 já não é o que era – se antes enchiam de quinta a domingo, hoje só abrem à sexta e ao sábado.
Segundo Henrique Fidalgo, da discoteca de Alvalade, “antigamente, as pessoas eram bem vistas porque pertenciam à casa A, B, C ou D. Hoje não são tão frequentes, a clientela é mais volátil”. Ainda assim, com quase meio século de história, tanto A Primorosa como o 2001 são casos de sucesso. “Estou convencido que neste momento não há outra discoteca com este cariz em Lisboa. A faixa etária aqui está entre os 35 e os 50/60 e as discotecas estão viradas para idades entre os 18 e os 30. É uma resistência”, acredita Fernando Jorge. Para Gonçalo Araújo, “as discotecas que estão na moda têm um problema – passam de moda”. “Como o 2001 se manteve na mesma linha, conseguiu cativar uma minoria fiel que se mantém até hoje. O grande segredo é esse. Não foi ceder ao mainstream, não foi ir atrás dos outros, foi manter-se fiel a si próprio, à sua imagem, à sua música”, remata.
Quem também não é de modas é Fernando Pereira, sócio do Jamaica – aberto em 1971 pelo seu pai e por mais dois sócios – e do Tokyo, comprado uns anos mais tarde. Mesmo tendo levado recentemente os clubes da rua cor-de-rosa para o Cais do Gás, Fernando fez questão de manter o espírito das casas. No Jamaica, os êxitos pop e rock continuam a dominar a pista, agora muito maior. O Tokyo, que partilha a entrada com o vizinho, continua a promover a música ao vivo, desta vez com melhores condições de palco, luz e som. “O que mudou foram as condições e depois o que tentámos fazer foi que isto se assemelhasse muito àquilo que as pessoas conheciam”, conta Fernando.
O Jamaica dos anos 1970, frequentado sobretudo por marinheiros e prostitutas, era animado com música ao vivo. “Nem se sabia o que era um DJ”, diz o dono. Só nos anos 1980, com a chegada de Mário Dias à cabine (lugar hoje ocupado pelo seu filho, Bruno Dias) e a vulgarização do vinil, é que a discoteca começou a prosperar. Passado um ano, o Tokyo seguiu-lhe os passos, com o disc-jockey Vítor Fernandes. “O Jamaica acabou por se tornar mais popular do que o Tokyo, não sei porquê”, revela Fernando. Ainda assim, por ser concorrência do irmão mais velho, acabou por se transformar em espaço de concertos.
Mesmo com a mudança para o Cais do Gás, tanto o Jamaica como o Tokyo continuam a encher. O segredo? A consistência. “As pessoas sabem ao que vêm”, acredita Fernando. Consta até que a boa reputação do Jamaica chegou aos ouvidos de estrelas planetárias. “Os Led Zeppelin vieram a Lisboa e alguém lhes deve ter dito para irem ao Jamaica. O porteiro olha para os gajos e diz 'não dá para entrar', não os reconheceu”, confessa o responsável.
Alguns anos mais tarde, em 1981, nasceu o Trumps. António Variações era presença assídua da casa e foi ali que deu os seus primeiros concertos. “O Trumps era como se fosse uma continuação do Frágil. As pessoas não vinham para uma discoteca gay, vinham para uma discoteca frequentada por muita gente gay, da noite, da moda, cabeleireiros… Era uma casa para todos”, recorda Dario de Abreu, que chegou ao bengaleiro em 1993 e agora é sócio da discoteca. “Entretanto virou mais gay e agora entrámos novamente numa coisa de queer, onde todos são bem-vindos.”
Também Ruth Bryden, uma das grandes figuras do transformismo português, actuou na discoteca do Príncipe Real nos anos 80/90. “Na altura não se chamavam shows drag, eram shows travesti”, esclarece Dario de Abreu. Só recentemente, em 2015, é que o Trumps se estreou nos shows drag. “No transformismo, o Finalmente é a casa, aqui passámos a ter o drag. Enquanto que no transformismo o homem tenta transformar-se numa diva – as pessoas querem acreditar que é a Whitney Houston que estão a ver –, aqui vão ver uma fantasia, uma mulher extravagante, é o exagero que faz a drag queen contemporânea”, explica Marco Mercier, sócio gerente do Trumps.
Ao contrário do que acontece noutras discotecas históricas, a clientela do Trumps é bastante mais jovem e à porta não se fazem selecções. “A maioria das pessoas que vêm ao Trumps são as últimas a ser atendidas quando vão à padaria. À porta temos, obviamente, de sanar isso”, afirma Mercier. “Recebemos toda a comunidade e estamos cada vez mais abertos. Nós somos um espaço cultural e social, aliás, qualquer espaço LGBT, mesmo as discotecas, têm uma vertente social muito importante”, acrescenta. Por isso criaram projectos como o Queer Art Lab, que apoia e dá palco a artistas queer, e a plataforma Cute, uma nova iniciativa para promover a diversidade nas empresas. “É uma casa boa, bonita”, afirma Dario de Abreu. E talvez seja esse o segredo da sua longevidade.
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