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“Há vários museus aqui dentro”. As palavras são de Bárbara Coutinho, directora do Mude, no dia em que resolveu abrir as portas à Time Out, antecipando a tão esperada reabertura do número 24 da Rua Augusta. Agendada para a próxima quinta-feira, às 19h30, será o desvendar de um espaço que, durante os últimos oito anos, foi alvo de profundos trabalhos de reabilitação. Uma obra, em parte, invisível para que agora seja devolvido à cidade – aos seus habitantes e visitantes – um Museu do Design melhorado, com oito pisos, 3600 metros quadrados de área expositiva e lugar até aqui inacessíveis ao público.
Abrem-se as portas, em primeiro lugar, para mostrar o próprio museu à cidade. Sem exposições – apenas 16 instalações que vão ajudar a contar a história deste edifício, antes e depois de se ter convertido na casa do design, sempre com a disciplina como norte –, o museu desenrolará o seu programa inaugural até ao final do ano.
Em Outubro, inaugurará a exposição de longa duração. Ainda sem título, e com a directora do museu a assumir o papel de curadora, ao lado de parte da equipa de investigação curatorial, vai ocupar os pisos três e quatro, unidos por um corte octagonal, figura geométrica usada como novo logotipo do Mude. “Vai ter uma integração de todas as expressões do design e sem mostrar as peças mais emblemáticas das nossas colecções, mas sim o design enquanto processo e contextualizado, de forma a perceber a razão pela qual cada objecto foi desenhado, produzido, consumido, percepcionado”, explica.
Numa planta que conta agora com quatro galerias de exposições temporárias, outras propostas espreitam na agenda. Com curadoria de Teresa Novais e Luís Tavares Pereira, “Mais do que Casas” apresenta uma investigação levada a cabo por estudantes de Arquitectura, Arquitectura Paisagista, Belas Artes e Engenharia de todo o país. Também sem data para inaugurar está “Portugal Pop. A moda em português. 1970-2020”, uma segunda versão – diferente – da exposição exibida em 2022 na Casa do Design em Matosinhos, debruçada sobre a cultura de moda no país, nos últimos 50 anos.
Os números do Mude
A obra para reabilitar a antiga sede do Banco Nacional Ultramarino ditou o encerramento do Mude em Maio de 2016, cerca de sete anos depois da inauguração. Durante oito anos e dois meses, sensivelmente, o Museu do Design (o nome simplificado vem agora substituir a denominação anterior – Museu do Design e da Moda) existiu na forma do programa Mude Fora de Portas, com exposições e diversos pontos da cidade de Lisboa e não só.
Quanto à grande obra – no tempo e no espaço, afinal, trata-se de 13.816 metros quadrados de área bruta –, foi feita em duas empreitadas. A primeira foi levada a cabo pela Soares da Costa. Seria interrompida em 2018, com a insolvência da construtora, com um custo “residual”, segundo Coutinho, que rondou um milhão de euros. A obra voltou a arrancar em 2021, já nas mãos da Teixeira Duarte. No final, a segunda e decisiva empreitada ficou por 13,4 milhões de euros (valor sem IVA).
Terminada a obra, é tempo de conhecer o renovado museu, que reabre, numa primeira fase, para se expor a si próprio. Até domingo (28), a entrada será gratuita. O mesmo acontece todas as sextas-feiras, a partir das 17.00, e aos domingos, entre as 10.00 e as 14.00. Mesmo a pagar – outrora gratuito, o bilhete de adulto custará 11€, o mesmo que custa entrar no MAAT, mais em conta que o Museu Calouste Gulbenkian, ligeiramente acima do cobrado no Museu de Arte Antiga –, é altura de ver o Mude como nunca o viu.
A arqueologia de um quarteirão
O edifício como conteúdo museológico. A proposta é diferente, mas tem a sua pertinência. Afinal, deixar o espaço, que é novidade, respirar é também uma forma de contar a sua história. Não é por acaso que a arquelogia de “O Edifício em Exposição” começa debaixo do solo, no piso -1.
“A espacialidade e a estética do edifício fizeram sempre parte, foram sempre matéria e conteúdo de apropriação e de reinterpretação para o resto das coisas que estavam a ser expostas. Faz parte do nosso ADN enquanto museu. Acresce que este projecto de reabilitação integral do edifício, que começou a ser desenvolvido em 2011 comigo e com o arquitecto Luís Miguel Saraiva, da Câmara Municipal de Lisboa, teve em conta a instalação inicial do Ricardo Carvalho e da Joana Vilhena e a experiência que fomos ganhando com as várias exposições. Houve um trabalho de investigação histórica que, muitas vezes, nos deu respostas. E essa arqueologia foi fundamentando as opções tomadas, tanto no projecto de museologia como no de arquitectura, que andaram sempre muito agarrados um ao outro”, introduz a directora do Mude, à medida que entramos na sala dos cofres de aluguer.
O espaço, outrora destinado a guardar os pertences dos clientes do banco, foi projectado em 1964, por Cristino da Silva, com mais de 3000 cofres de aluguer. Recebeu a primeira exposição em 2010 e reabre agora, aparentemente intocada, para privilegiar peças de pequena escala. No centro, as novas vitrines expõem 77 garrafas de vidro. São sobreviventes do terramoto de 1755, encontradas em 1998, durante trabalhos de reforço dos alicerces do edifício, e agora cedidas pelo núcleo museológico do Teatro Romano.
A visita guiada acontece, daqui em diante, no sentido ascendente. Equipado de elevadores e acessibilidades para todos, algo novo no edifício, são agora múltiplas as opções para subir e descer. Os vários tempos – os “vários museus” – combinam-se dentro de um mesmo edifício. A nova sinalética de Pedro Falcão; a futura loja e livraria, que ocupa o interior do grande balcão do piso térreo, projectada por Marco Sousa Santos; a luminária de 1960 perfeitamente recuperada; o painel em mosaicos de vidro de Murano da autoria de Guilherme Camarinha; as velhas máquinas de escrever com o teclado português imposto pelo Estado Novo; a cadeira ao estilo D. José, produzida pelo artesãos da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva para as luxuosas alas reservadas à administração; a sala forrada a madeiras exóticas e veludo, onde serão projectadas imagens do respectivo restauro; os retratos de 88 trabalhadores pela lente de Luísa Ferreira, ao longo de 1004 dias de obra; a mesa em pinho agora desenhada por Gonçalo Prudêncio, que contrasta com o fausto dos lustres, na biblioteca.
“São muitos tempos que estão aqui. Há uma grande densificação temporal e significativa nestes espaços. É uma arqueologia que não destrói, porque estamos a fazer isto sobre camadas, que continuam visíveis”, acrescenta. Circulamos num quarteirão colossal, em plena Baixa Pombalina, projectado entre 1957 e 1964 para ser “fechado, autocrático, hierarquizado, segregador”. Hoje, a maioria dos compartimentos caiu e restam poucas áreas vedadas. Aberto, democratizado, liberto e transparente – eis o Mude e a sua mais recente camada.
Um museu com corpete de aço
Chegamos ao coração do Mude – o terceiro piso. Temos três andares debaixo dos pés e quatro sobre as nossas cabeças. A sala, destinada às exposições de longa duração, é surpreendentemente familiar. Paredes e tecto continuam crus, uma imagem que sempre foi marca da casa e que o projecto de arquitectura fez questão de manter, renunciando à tentação de criar um espaço branco e asséptico. Aqui, a intervenção salta menos à vista – iluminação, som, climatização.
As amplas galeiras onde, por fim, entramos nem sempre fez parte dos planos, mas a criatividade da engenharia conseguiu dar a volta ao que parecia ser uma inevitabilidade. “O reforço estrutural deste edifício implicava, segundo o projecto inicial, perder esta amplitude. O espaço tinha de ser segmentado e preenchido com betão. E todas as paredes tinham de ser reforçadas com betão, o que nos faria perder esta materialidade que tanto marcou o Mude. A solução acabou por surgir de forma mais inventiva”, explica a directora do museu. Cada uma das janelas do edifício é sustentada por um vão de aço e todos estão unidos entre si através de cabos feitos no mesmo material, criando uma gaiola retangular. “Cria uma espécie de corpete, que sustém o edifício”, remata.
No piso de baixo, o auditório. Da pastilha dos anos 60 que cobre a escadaria central, passamos para a atmosfera acolhedora que só a madeira proporciona. A sala parece intacta, já que foi apenas apetrechada com melhores equipamentos de som, vídeo e luz. A jóia do segundo andar está do outro lado – uma cafetaria projectada por António Garcia em 1991, juntamente com o próprio auditório, cenário digno de uma publicação de interiores escandinavos, não obstante o recheio seja bem nacional, com mobiliário da Around the Tree, candeeiros da Crisbase e cortinas e revestimento do tecto da Burel Factory. Mais português que isto era impossível. Prevê-se que funcione em permanência e que seja também palco de tertúlias e outras conversas.
Subidos dois andares, chegamos às reservas, ou pelo menos à parte visitável. “Temos duas grandes áreas, uma é visitável, a outra não. No total, são quase 1100 metros quadrados”, observa Coutinho, enquanto acede à zona destinada a uma parte do acervo de design gráfico, preparada para receber público de todas as idades. “Com o equipamento propício, podemos possibilitar aquilo que tem vindo a ser feito em muitos museus do mundo, mas que em Portugal, se calhar, não é tão comum ainda – facultar esta sensação de entrada num espaço que é tão reservado. Os bastidores”, nota.
O acervo tem crescido, mesmo com o museu fechado para obras durante oito anos. Entre aquisições, doações e alguns depósitos de longa duração, o Mude conta hoje com 16.951 itens. O processo teve início em 2002, com a aquisição da Colecção Francisco Capelo, composta por 1362 peças e coordenados de moda, pela Câmara Municipal de Lisboa. Hoje, conta com 15 colecções, estando mais três em fase de incorporação. No renovado edifício, há espaço para o design gráfico (parte dele acessível ao público no quarto piso), para a joalharia e para alguns objectos decorativos, permanecendo as restantes peças – design de produto, de moda, de cena e de interiores – guardadas noutro ponto da cidade.
Ver as vistas
Subimos ao sexto e último andar, não sem antes passar pelo quinto – território igualmente vedado no velho Mude e que agora se prepara para ser contagiado pelo propósito de enaltecer, pensar e cultivar o design. Estamos no piso dos Design Labs, zona pensada para acolher residências de designers e apresentações de projectos pioneiros e experimentais dentro da disciplina. Espaços de trabalho que não vão abrir por enquanto, só a partir de Setembro.
Longe vai o tempo em que só os administradores do banco subiam até ao sexto piso para se refastelarem à mesa. A cozinha do antigo restaurante há muito que não mexia, o que está prestes a mudar. Na sala, octogonal, dois elementos ficaram para contar a história – uma mesa redonda, desenhada por Daciano da Costa para este mesmo espaço, e uma iluminura quinhentista, onde se reconhece imediatamente o casario lisboeta, num painel de azulejo da Viúva Lamego, sem falar na pastilha que reveste as paredes, azul e especialmente à frente do seu tempo.
Abertas, as portadas dão acesso ao terraço, um circuito de 360 graus com vista privilegiada para os telhados da Baixa Pombalina, o Arco da Rua Augusta e a Colina do Castelo. O postal está servido. Já para se sentar à mesa do restaurante terá de esperar mais uns meses. O caderno de encargos está a ser fechado, para depois atribuir a concessão do espaço a quem propuser uma cozinha mediterrânica, que privilegie os produtos locais e sazonais, entre outros requisitos.
A grande montra do design em Portugal surge agora, na sua ambição museológica, taco a taco com as grandes instituições museológicas da capital e do país. Bárbara Coutinho fala num museu com “acção local, nacional e internacional”, que, além de ter a capacidade de comunicar com diferentes público, quer retomar o papel de âncora no esforço para combater a desertificação da Baixa. “Estamos finalmente com todos os meios para poder desenvolver a nossa acção em pleno”, conclui. “Com toda a humildade, considero o Mude um projecto que lança novos desafios à própria museologia, a um entendimento do que é o património e o restauro e a reabilitação. Claro que estamos totalmente cientes, eu em particular, das grandes responsabilidades que nos assistem.” Para já, antes de qualquer outra responsabilidade, há que voltar a abrir a pesada porta da Rua Augusta. Mesmo sem as exposições, este museu nunca se esvazia.
Rua Augusta, 24 (Baixa). 21 817 1892. Dom, Ter-Qui 10.00-19.00, Sex-Sáb 10.00-21.00 (horário de Verão). 11€ (adulto); 5,50€ (estudantes, 13-25, maiores de 65); entrada gratuita até 28 Jul, Sex a partir das 17.00, Dom 10.00-14.00. Mais informações em mude.pt
Notícia actualizada às 21.45 do dia 23 de Julho de 2024.
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