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A Vila Berta é um dos principais espaços de folia do bairro da Graça por altura dos Santos Populares, mas antes de voltar a virar o copo e a dar um pezinho de dança ao som de música popular num dos seus badalados arraiais, saiba que não o estará a fazer numa vila operária, como pensava. Quem o diz é Estêvão Tojal: morador, arquitecto e bisneto do fundador deste condomínio construído há mais de 100 anos para acolher uma pequena burguesia que chegava a Lisboa.
Os bairros operários foram a resposta alfacinha à migração das comunidades rurais para a capital entre o último quartel do século XIX e o início do século XX, por alturas da industrialização. Ah, pois é: a crise de habitação que se vive hoje na cidade não é nova. Como nos explica o historiador Mário Gomes, guia turístico no seu projecto Storic, a primeira solução para os milhares de operários que chegavam a Lisboa foram velhos palácios de uma aristocracia cada vez mais falida, que alugava ou vendia as suas propriedades, ou espaços conventuais, após a extinção das ordens religiosas.
Mas havia graves problemas de salubridade em muitos destes pátios operários e urgia erguer habitações planeadas de raiz. As primeiras foram construídas pela indústria têxtil, como a Companhia de Fiação de Tecidos Lisbonense, que fez um bloco de casas na Rua 1.º de Maio, situada nas traseiras do que é hoje a Lx Factory. Alcântara e a Zona Ribeirinha Oriental foram grandes pólos de habitação operária, próxima dos locais de produção, embora haja vilas espalhadas um pouco por toda a cidade. Mas a famosa Vila Berta, de Joaquim Francisco Tojal, apesar de ser contemporânea de todo este processo, não teve nada a ver com operários.
Tem graça
“Chamam-lhes vilas operárias erradamente, é a minha opinião. Nomeadamente esta vila. Por exemplo, o Bairro Grandella em Benfica, esse sim é uma vila operária, porque os contratos dos trabalhadores incluíam a habitação”, explica Estêvão, que foi responsável pela reabilitação das fachadas da Vila Berta entre 2015 e 2016, num projecto co-assinado pela arquitecta Joana Grilo.
Originalmente concluído em 1911, este foi um projecto destinado a uma pequena burguesia que também chegava à capital, como alfaiates ou modistas, e também a membros da família de Joaquim Francisco Tojal, o fundador, proprietário de uma empresa de construção que começou por erguer ali a sua própria casa, a “casa branca”. Só depois veio o resto: a “fiada de edifícios mais modestos”, no lado oposto às casas com as varandas compridas, construídas pouco tempo depois, bem como o prédio que tem o arco e “uns apartamentos enormes”, descreve o arquitecto.
As habitações mais modestas, explica por seu turno o historiador durante a visita, estavam localizadas nas caves dessa fiada, essas sim destinadas aos operários e mestres do estaleiro de construção Tojal. Mas não passou disso. “O meu bisavô, com capitais próprios, foi construindo as habitações para rendimento próprio. Não era para empregados dele”, explica Estêvão.
A Vila Berta chegou a ser um condomínio fechado, com portões instalados em cada ponta do arruamento, que não existem pelo menos desde os anos 1940. E havia alguns luxos que se prolongaram no tempo. “Havia aqui um empregado da família, que acendia as luzes ao fim do dia, recolhia os lixos e tratava das plantas. A partir de 1980, quando ele se reformou, já não havia viabilidade, havia aqui uma série de população que já não era família. Mas quase que era. Não havia laços familiares, mas havia laços de amizade”, lembra o bisneto de Joaquim Francisco, actual morador da “casa branca”.
Um dia, todos decidiram montar um arraial à porta. Começou com a descoberta de uma fotografia antiga, datada de 1910, com a vila “toda engalanada” e terminou com uma comissão de moradores a organizar o primeiro de muitos arraiais na Vila Berta, em 2010. “Foi só uma noite, tudo muito atamancado, em cima do joelho, mas foi um êxito. De tal maneira que no ano seguinte já tínhamos uma comissão de festas. A partir daí foi o que foi”, lembra Estêvão Tojal. Em 2014, foi criada a Associação de Defesa do Património da Vila Berta, que precedeu os trabalhos de restauro. Classificada em 1996 como Imóvel de Interesse Público, a classificação foi revista em Maio deste ano para Conjunto de Interesse Público, que considera “a envolvente urbanística do conjunto”.
Se quiser explorar com particular detalhe toda a génese dos pátios e vilas, em particular na zona da Graça, um dos portos mais seguros é a visita desenhada por Mário Gomes, que seguimos com atenção pelo Bairro Estrela d’Ouro, a Villa Sousa ou a Vila Rodrigues.
A vila é de todos
A razão pela qual as vilas operárias da cidade são praticamente todas anteriores aos anos 30 do século passado nasce com um regulamento camarário que proíbe a sua construção. Por outro lado, o Estado Novo chamou a si a promoção da habitação económica, dando preferência a casas económicas independentes. Uma forma de “quebrar a união” entre moradores e “domar a população”, explica Mário Gomes durante o passeio. Hoje, a autarquia é proprietária de um bom número de vilas (61 espaços, segundo dados de 2016). Entre elas, a Vila Dias, construída há mais de 130 anos para abrigar operários de fábricas em Xabregas e adquirida pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) em 2020, na sequência de ameaças de despejo pelo anterior proprietário. O município assegurou que os edifícios serão reabilitados, assim como a zona envolvente, num investimento de 3,6 milhões de euros.
Também na mira da reabilitação, e numa primeira fase, está um conjunto de vilas municipais. O projecto não só tem por objectivo proporcionar melhores condições de habitação aos actuais moradores, como aumentar a oferta de habitação com rendas acessíveis, num modelo de ocupação intergeracional. São elas: Pátio do Beirão (Marvila), Vila Romão da Silva (Campolide), Vila Bela Vista (Beato), Vila Elvira (Campolide), Pátio do Bastos (Estrela), Pátio do Paulino (Alcântara) e Vila Travessa de Paulo Jorge (Belém). Tentámos saber em que fase se encontram estes projectos, mas não obtivemos resposta por parte da CML.
Fique por sua conta
As habitações que em tempos abrigaram os mais pobres são hoje muito cobiçadas. Mas a experiência de viver em comunidade numa vila alfacinha pode ser alcançada, embora não seja tão acessível assim. Há, por exemplo, um T2 de 50 m² à venda na Vila Cândida (Penha de França), por 162 mil euros, o que hoje em dia muitos consideram uma pechincha, tendo em conta os níveis de especulação imobiliária. Preços um pouco mais altos encontra em vilas remodeladas, hoje condomínios de luxo, como a Vila do Rosário, na Graça, onde encontrámos um T2 por 319 mil euros, ou a Vila Adell, na Ajuda, onde ainda estão à venda dois T0 por 220 mil cada. Pode ainda optar por passar uns dias numa vila de luxo, mais concretamente na Vila Rosário. Se procurar no airbnb, encontra duas noites a partir de 178€.
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