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Villana Marie está a entrar num táxi, em Madrid, quando atende o telefone. A rapper e cantora, nascida há 29 anos em Porto Rico, tem passado os últimos anos a “viajar muito”, para se apresentar ao vivo e para colaborar com artistas de todo o mundo, da perreadora canadiana Isabella Lovestory à futurista iraniana Sevdaliza, passando pelo produtor argentino Bizarrap, que a convidou para as suas BZRP Music Sessions em 2022. Esta sexta-feira, 24, aterra em Lisboa e apresenta-se ao vivo no Musicbox. Antes do seu primeiro concerto em Portugal, falámos do álbum Miss Misogyny (2024) e dos desafios de ser uma pessoa não-binária transfeminina no contexto das músicas urbanas latinas, ainda muito misógino e queerfóbico – apesar de já ter sido pior.
No teu primeiro álbum havia muitos produtores e outros autores creditados, mas no novo, Miss Misogyny, trabalhas quase exclusivamente com o produtor e compositor porto-riquenho Young Martino. Porquê?
Adoro que me estejas a perguntar isso, porque é indissociável daquilo que quis capturar em Miss Misogyny, da sua essência. Este projecto tem uma energia muito particular, das ruas, ao nível dos ritmos usados e dos diferentes subgéneros de que me aproximo. E optei por trabalhar apenas com o Young Martino, lado a lado, porque ele vem dessas ruas e conhece intimamente esses ritmos, além de ter feito batidas incríveis, dentro do género. Portanto, percebeu logo onde queria chegar, não tive de perder tempo a traduzir as minhas ideias. Às vezes, quando trabalho com produtores que não conhecem o meio sócio-cultural em que me movo, e de onde venho, é difícil explicar algumas coisas e ideias musicais e não queria que nada se perdesse nesta tradução, por assim dizer.
Imagino que, no meio do trap latino e do reggaeton, ainda por cima num sítio como Porto Rico, machista e homofóbico, a tua própria existência, enquanto pessoa trans, seja um desafio. Ou não?
Dizer que não seria uma mentira, estaria a enganar-me a mim própria. Há alguns aliados, e o Martino é um deles – apesar de se mover nesse meio, está muito bem resolvido. É um homem do futuro, por assim dizer. Mas o que abunda é o oposto; o machismo e a misoginia encontram-se na ordem do dia. Por isso, a meu ver, a tua análise está correcta. Confesso, no entanto, que, pela maneira como interiorizo as coisas e por precisar de algum combustível para fazer música, até tem sido bom para mim, porque posso canalizar a raiva que sinto para o meu trabalho. Quando me fecham as portas na cara, e eu sei exactamente porquê, estão a ajudar-me, uso essa energia para continuar a elevar-me, não obstante tudo o que me é negado. É um arco de desenvolvimento pessoal necessário para uma vilã como eu.
O título, Miss Misogyny, é uma crítica a essa misoginia?
Não é completa e abertamente uma crítica. Ou seja, essa crítica está lá, escondida, porém o nome do disco pode ser interpretado como algo neutral, ou até que essa misoginia está a ser celebrada. Optei por este título, porque me parece que a misoginia é o que mais se consome neste contexto [das músicas urbanas latinas]. Não estou a falar de machismo, nem do enaltecimento dos homens que dominam este estilo de música, mas de um desdém ou um ódio muito particular por mulheres. É curioso porque, sendo uma mulher que não só faz canções deste género, como as consome e existe no seu meio, também eu e outras encontramos maneira de nos empoderarmos através de uma música que está acostumada a retratar-nos…
Como objectos.
Pois. É meio contracultura, mas o que fiz foi apenas dar esse nome ao projecto porque parece-me que era a maneira mais clara de passar a mensagem de que é isto que se consome, quer as pessoas e os artistas o aceitem ou não. Então por que não dizê-lo explicitamente e chamar os bois pelo nome?
Na capa do disco apareces vestida de miss. É para a mensagem passar melhor?
Quis explorar o universo dos desfiles de misses, porque também tem muito a ver com a cultura porto-riquenha, com o transexualismo e o travestismo. Esses desfiles, e a maneira como reforçam o conceito de feminilidade, também se cruzam com o meu percurso de vida.
Quão diferente é a cultura trans em Porto Rico e em Espanha ou nos Estados Unidos, por exemplo?
Há muitas diferenças. Mesmo entre Espanha e os Estados Unidos. Por Porto Rico, lamentavelmente, estar muito directamente ligado e submetido ao império ianque, a maneira como eles encaram estas coisas acaba por afectar a realidade da ilha. Os americanos, neste momento, estão passados com muitas coisas, parecem estar a meio de um surto psicótico. E tudo isso acaba por chegar a Porto Rico, já um pouco diluído, mas encontra muitos ouvidos atentos, com muita pena minha. Por causa dos Estados Unidos, o nosso sistema de saúde está em ruptura, a educação também. Em vez de estarmos a pensar nisso, preocupamo-nos com trivialidades. E lá passa-se o mesmo, creio. Têm problemas muito maiores, todavia preferem concentrar-se nisto.
Isso não acontece por acaso. Os multimilionários como o Donald Trump e o Elon Musk preferem que os trabalhadores se concentrem nestes temas fracturantes do que nas verdadeiras razões pelas quais a sua existência é cada vez mais precária.
Claro. É difícil pensar ou querer saber dos nossos direitos, quando estamos a lutar para sobreviver. E isso acontece muito em Porto Rico. É um país socialmente debilitado, e estamos a lutar uns com os outros por coisas que não fazem sentido. E depois Porto Rico tem uma das taxas de transfeminicídio mais altas do hemisfério. E não só nos matam, como nos matam da maneira mais horrorosa possível. Contudo, não acontece nada aos assassinos, porque a polícia não quer saber, a não ser que haja uma pressão mediática muito forte. O que quase nunca acontece porque lá ainda é normal que os jornais se refiram às pessoas trans pelos seus nomes mortos e que usem um género que não é o delas. E as televisões também.
Porra.
É importante salvaguardar que, apesar deste panorama, eu já viajei pelo mundo inteiro e em quase nenhum outro lado vi os mesmos homens que estão dispostos a matar-te a cobiçar-te e a meter conversa e a ir ter contigo à noite. É uma loucura que aquilo que se deseja e aquilo que se abomina sejam o mesmo.
As pessoas mais homofóbicas e transfóbicas tendem a ser essas, em todo o lado. Sentem-se mal consigo por não serem os machos que aparentam, e descarregam a sua frustração e o ódio que sentem por si próprios nos seus objectos de desejo.
Talvez.
Sentes que a nova geração de artistas latinos – como tu ou a Tomasa del Real, uma reggaetonera feminista, e até o Bad Bunny, com quem já cantaste ao vivo – está a contribuir para mudar essas mentalidades, pelo menos junto do público mais jovem?
Não sei responder-te. Trouxeram para cima da mesa temas que era importante debater-se, mas… São problemas tão grandes que não se resolvem com conversas. Isso não é suficiente. Portanto, não se pode dizer que tenha impacto, ou que contribua para resolver estas questões. Olha para o panorama político mundial, para o estado das coisas. E muitos artistas não dizem nada. Portanto, não acho que seja um bom barómetro. Para mim, enquanto mulher trans e pessoa dissidente, não parece ter mudado nada. Pelo contrário, estamos a assistir a uma escalada fascista bem forte e global. A música latina não é a excepção.
A entrevista não pode terminar assim. Fala-me um bocado do concerto desta sexta-feira, 24, no Musicbox. Por favor.
A minha dinâmica em palco é de rapper. Gosto de sentir a energia das pessoas. Tenho andado a apresentar estas canções, muitas vezes, em salas maiores, contudo, quando concebi o espectáculo, imaginava-o em discotecas pequenas, porque normalmente é onde vão as pessoas como eu. São das ruas, somos marginalizadas, e gostava de manter essa energia mais íntima, mas muito hardcore. Também muito sexual e livre. Sempre disse que sou uma puta que faz música para putas, e merecemos que alguém nos enalteça e faça sentir bem quando vamos à discoteca. É o que tento fazer.
Musicbox. 24 Jan (Sex). 20.30. 18€
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