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A nova encenação de John Romão, que passa esta semana pela Culturgest, releva-nos um sistema de educação opressivo e fechado, onde num grupo de meninas cada uma tenta ser a melhor. Chama-se Virgens Suicidas.
Calçar umas luvas pode ser uma carta de intenções. A forma vagarosa com que se introduzem os dedos, o olhar fatal, a pose de poucos amigos. Quem aqui o faz é uma mulher implacável, sempre vestida de preto, sempre pronta a corrigir costas menos direitas. Rapidamente se percebe – assim que um grupo de meninas vestida de igual, caminhando ao mesmo passo, que se dispõe numa formatura rígida, quase militar – que esta mulher é a criadora deste sistema de ensino secreto, no qual jovens meninas, em isolamento do mundo exterior, são alvo de uma educação opressiva, uma ginástica ditatorial em que se exige um corpo perfeito.
Estamos em Virgens Suicidas, nova criação de John Romão que se estreia na Culturgest esta quarta-feira, onde fica até sábado. O criador da BoCA Bienal partiu do livro homónimo de Jeffrey Eugenides (que em 1999 gerou também um filme de Sofia Coppola) e daí chegou a Mine-Haha, obra do dramaturgo alemão Frank Wedekind. O primeiro fala de um grupo de rapazes que se deixa hipnotizar por cinco raparigas que se suicidam; o segundo é um documento post-mortem de uma mulher que se mata aos 80 anos e que foi aluna de um sistema educativo à imagem deste que aqui descrevemos. O espectáculo é um atalho entre ambos.
De uniforme igual – saia azul, meias brancas, camisa transparente – as meninas cumprem uma série de exercícios, a mando das professoras, com vista a um espectáculo final que se está a aproximar. Falamos de pinos, de movimentos de braços, de coreografias de grupo que exigem, logicamente, uma sincronização perfeita. Mas esta aparente seita do corpo tem um outro lado mais sinistro, onde as duas criadoras deste lugar se servem de tubos de ensaio para recolher pêlos púbicos das suas alunas depois da depilação diária. “Sim, é quase uma seita, que na verdade não é assim tão distante de alguns sistemas educativos mais fechados e totalitários que conhecemos da nossa história. Há coisas aqui, o movimento coreográfico sobretudo, em que me inspirei na Mocidade Portuguesa Feminina ou na Juventude Hitleriana. Por um lado há essa referência numa certa qualidade física, mas ao mesmo tempo apontamos para um futuro. O espectáculo bebe coisas do passado, mas a olhar em frente. Estas mulheres, na verdade, estão ali a fazer experiências científicas, recolhem sangue, recolhem cabelo”, enquadra Romão.
Foi através de um casting que o encenador escolheu estas raparigas, oriundas de diferentes estruturas: Escola Superior de Teatro e Cinema, Escola Superior de Teatro de Cascais, Chapitô, Ginásio Clube Português, etc. Corpos novos, ainda em crescimento, para os quais o espectador é obrigado a olhar também através de uma dimensão erótica, deixando-o num lugar confortável, embora à procura de entender o motivo da instrumentalização destes corpos. Mistério impossível de resolver. O que já parece mais possível é absorver a luta destas jovens perante o sistema que as domina: “O que é interessante aqui é pensar na relação entre o indivíduo e o sistema. Como é que nos individualizamos e não somos mais um número? Aqui ela é sempre cometida através de um gesto transgressor, seja pelo facto de gostar de uma outra rapariga, seja pelo suicídio, seja por morder a perna de uma das professoras. E é sempre uma transgressão dentro do plano emocional e interior, porque é o único plano onde estas meninas podem operar”, afirma o encenador.
Num tempo onde cada vez mais nascem corpos que não existem, no tempo da realidade virtual “o importante é o regresso à materialidade”, diz John Romão. Estas Virgens Suicidas estão mesmo lá.
Culturgest. Qua-Sex 21.00. Sáb 19.00. 7-14€.
Concepção e cenografia John Romão
Textos Mickaël de Oliveira
Com Luísa Cruz, Mariana Tengner Barros, Vera Mantero, Carlos Lebre, Catarina Bertrand Torres, Cecília Borges, Céline Martins, Inês Azedo, Inês Costa Graça, Marta