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Virgílio Castelo começou no teatro aos 21 anos. Foi em 1974, depois de ser feita a revolução. Mas nestes últimos 50, não se ficou apenas pelos palcos. Andou (e anda) na televisão, no cinema e na literatura. Já fez muita coisa. Aliás, só lhe falta realizar um filme, mas parece que também já anda a pensar nisso. Considera-se um “operário do teatro, do cinema e da televisão” e não nega que no teatro tem uma casa. A partir desta quarta-feira, até 27 de Novembro, volta a protagonizar O Homem da Amália, no Centro Cultural da Malaposta.
Como é voltar a protagonizar O Homem da Amália, agora que estás a celebrar 50 anos de carreira?
Sabes, não atribuo nenhum significado especial aos 50 anos de carreira, porque tenho uma maneira de olhar para a vida que é muito em função do presente e do futuro, e pouco do passado. O passado, ao contrário do que diz o escritor, não é um país que me apeteça visitar. E voltar a fazer O Homem da Amália é um gosto. O espectáculo é uma homenagem minha à Amália, que não conheci. Além de gostar dela como fadista e como símbolo de uma certa portugalidade, havia nela qualquer coisa que me fascinava e ainda hoje fascina. Então resolvi escrever uma peça sobre um homem que nunca esteve perto da Amália, mas que acha que, se ela tivesse olhado para ele, teria gostado dele.
Ao escreveres e protagonizares a peça, sentes-te mais próximo dela?
Sinto-me muito mais próximo dela. E, cada vez que faço a peça, há uma comunhão. A partir deste dispositivo dramatúrgico, em que vou interpretando a sua mãe, avó, os seus maridos, consigo recriar grande parte da vida dela. Há toda uma narrativa teatral que me permite fazer com que o público esteja mais próximo dela. É uma espécie de in memoriam, mais do que é a minha vontade de estar perto dela.
Ao longo destes 50 anos, fizeste muita coisa. És actor, dramaturgo, encenador, escritor… Passar de um meio para o outro e entrar em diferentes projectos é um desafio a que te propões?
Sim, cada projecto novo é sempre um desafio. Tem a ver com a minha personalidade, com algo que não sei explicar bem, mas sou fascinado por tudo o que não conheço. Eu existo, como Virgílio, mas é como se estivesse a tirar férias de mim em permanência. Agora vou fazer de homem da Amália, depois vou fazer uma peça completamente diferente, e depois estou a fazer uma novela, que é ainda mais diferente. Essa despersonalização é uma coisa de que não só gosto, como se calhar preciso. Parece que há sempre uma coisa nova a acontecer e há sempre um entusiasmo. Preciso desse entusiasmo.
É isso que te leva a aceitar diferentes papéis, então?
Sim. Com alguns encenadores, inclusive, é isso que me faz aceitar os projectos sem sequer ler o que é. Alguns dizem-me ‘Virgílio, estás livre nestas datas?’, e eu digo ‘Estou, bora lá fazer’. Só depois é que vejo o que é. Não sou muito ponderado a analisar se devo ou não fazer. Vou e depois logo vejo se resulta ou não. Tenho uma sede enorme de mudança, herdei isso da minha mãe.
Achas que essa vontade de mudança também acaba por estar ligada a uma espécie de carácter camaleónico que está presente na profissão do actor?
Não te sei dizer. Há imensos estudos sobre o porquê de se ser actor. Mas não faço a menor ideia porque é que vim aqui parar. À medida que vou envelhecendo e que vou tentando perceber quem fui até agora, cada vez mais me vou afunilando numa espécie de explicação. Sinto-me mais poeta do que actor. Comecei a representar aos 21 e comecei a escrever poesia aos 17, 18 anos. A poesia tem uma dimensão de desconhecido, oráculo, de profecia. E como os poetas, olho para a vida através da imaginação, raramente sou objectivo em relação a seja o que for. Talvez o denominador comum que tenho com outros actores é ter uma imaginação tão fértil.
Dizes que te sentes mais poeta do que actor, mas acabas por trabalhar maioritariamente em representação.
Sim, há razões para isso. Primeiro, eu sou um poeta do século XVI. Eu escrevo oitavas e redondilhas, a minha poesia é mais musical. Saem-me sonetos com a mesma facilidade com que bebo água. E escrevo como se estivesse a viver em 1480 ou 1510, isso não tem interesse nenhum para o público. Hoje em dia, a poesia que se publica é mais depurada do ponto de vista verbal e da sintaxe, por isso é que acho que não publico.
Mas publicas outras obras.
É muito diferente. O romance ou o livro de contos, como quero publicar no próximo ano, é intemporal. Escreves um romance agora como escrevias há 200 anos. Os estilos serão mais actualizados, mas a estrutura narrativa é a mesma. O poema é outra coisa, reflecte algo que é mais misterioso do que a vida. Os bons poetas são profetas, porque estão a chegar à verdade mais profunda antes dos outros. Há esse lado profético que eu não consigo ver na poesia que se escreve hoje em dia. E a poesia é uma coisa que tens de sentir. Talvez o último poeta que li e que senti qualquer coisa foi o Herberto Helder. Daí para cá, ou não conheço, ou então não me comove.
E com o teatro ou o cinema, também te comoves dessa maneira?
Tanto o teatro como o cinema têm uma componente diferente. Enquanto a poesia tem qualquer coisa de premonitório, o cinema e o teatro não podem ter. São artes populares. Podes escrever um poema que não é entendido agora, mas é entendido daqui a 100 anos. Com uma peça de teatro não é possível, o público está ali. O teatro interessa às pessoas porque retrata a sua contemporaneidade e não pode partir de uma tentativa de provar uma tese. O teatro começou como um ritual litúrgico, as pessoas iam para os anfiteatros e gritavam, cantavam, bebiam, comiam, faziam sexo uns com os outros. Aquilo era uma loucura de emoção e, quando o teatro perde a dimensão da emoção, perde público. E o teatro em Portugal está em crise há anos, porque não se funda na emoção, mas sim numa dimensão mais cerebral, analítica, especulativa. Falta sentido, o que é um problema.
Porque é que achas que falta sentido?
É uma corrente de pensamento que se instalou, a seguir ao 25 de Abril, em que houve uma mudança no sistema de produção. Hoje em dia, tens 80% de teatro experimental, de ensaio, pesquisa, e tens 20% de teatro normal. Isto é uma aberração. Acho que o sistema de produção levou a que se tenha criado a ideia de que o teatro que tem muito público é teatro comercial. Há uma inversão das coisas, ou seja, se agrada, é porque é mau, se ninguém vai ver, é porque ninguém percebeu e o público não está preparado. Isto não faz sentido, porque o teatro vive das pessoas que ali estão. Não há uma aposta nas emoções, o que não quer dizer que tens de fazer teatro pimba para as pessoas irem, não é disso que se trata. Mas o lado emocional do teatro perdeu-se um bocado em Portugal.
E, por exemplo, O Homem da Amália é teatro emocional?
O Homem da Amália é uma coisa diferente. É muito pessoal, é uma homenagem a uma mulher que eu gostava de ter conhecido, não sei onde posso encaixar. Mas diria que, por isso, está mais próximo do lado emocional, do que propriamente do lado racional. É um tributo.
Há um tempo, dizias numa entrevista que te sentes um “operário do teatro, da televisão e do cinema”. Sempre te sentiste assim?
Sim. O que eu quis dizer é que eu não sou um engenheiro, sou um operário. Um engenheiro é quem decide as obras, o operário faz. Nestes 50 anos, só houve duas situações em que disse ‘eu quero fazer isto’. Estava a trabalhar no Brasil e pensei ‘quando voltar a Portugal, quero fazer uma peça de teatro com o Ruy de Carvalho e uma com a Maria João Luís’. Não decidi que peças é que eram, a única coisa que queria fazer era uma peça com um e uma peça com outro – e fiz. Foi o único momento em que me senti engenheiro.
E por isso é que estás sempre em diferentes projectos.
Sim, completamente. Nunca houve em mim uma convicção suficientemente forte para dizer ‘eu quero fazer isto’. Nem como actor, nem como encenador, nunca tive. As únicas vezes que tive foram essas duas e agora tenho um projecto que queria mesmo fazer. Escrevi um guião para um filme e gostava muito de interessar um produtor por aquela história e depois vir eu a realizar. Mas é a terceira vez que isto me acontece em 50 anos.
Porque é que achas que aconteceu agora?
Não faço ideia. Costumam perguntar-me o que é que me falta fazer, porque realmente tenho tido uma vida cheia do ponto de vista profissional, e digo ‘o que me falta fazer é um filme’. Já passei por quase todos os instrumentos da profissão, portanto agora gostava de realizar um filme. É um filme sobre a dificuldade de fazer um filme – porque é que vou fazer esta cena, porque é que vou contratar aquele actor, porque é que quero contar esta história. Acho uma interrogação enorme. O que é que custa fazer um filme? Até que ponto é que isso corresponde a algo que é importante ou não?
Há bocado estavas a dizer que o teatro em Portugal está em crise. Sendo que começaste a fazer teatro em 1974, quais são as maiores mudanças que vês hoje no teatro?
Acho que é como tudo. Há coisas que mudaram para melhor, mas no caso concreto do teatro, do cinema e, de algum modo, da literatura em Portugal, acho que há algo que não correu bem. O facto de o teatro e de o cinema serem completamente subsidiados pelo Estado cria um problema. Tem de haver algum compromisso entre a produção e a realização e não há. Seja no teatro ou no cinema, o poder é todo do realizador ou encenador. Tens o subsídio do Estado, que é dado em função de um critério artístico. É uma política de gosto e se é uma política de gosto, não é lá muito democrática. E há outro problema. Se faço uma peça de teatro e, em vez de ter mil espectadores, tenho dez e recebo o subsídio, porque os “critérios de qualidade” foram autorizados pelo júri, a seguir, em vez de dez, tenho cinco e vou dizer ‘isto tem qualidade, o público é que é estúpido’. E estamos nisto há cinquenta anos.
E como é que achas que as coisas podem melhorar?
No caso do teatro, tem de passar a haver uma obrigatoriedade. Só tens subsídio se tiveres um determinado público. Se não tens público, não podes ter subsídio. Não faz sentido. É uma contradição que eu não consigo entender.
Mas depois as criações ficam à mercê do gosto do público.
Isso é o argumento que é aduzido por quem não está de acordo comigo. Volta-se à questão de que não precisas de fazer uma coisa pimba, não precisas de fazer uma coisa má para ter público. O desafio não é esse, não é abastardares o gosto para chegar ao público pimba. Há muitos tons de cinzento entre o preto e o branco e, como criador, tens de ir à procura dos vários tons de cinzento que há. Não é nem o branco dos iluminados, nem o preto dos ignorantes. É fazer, se quiseres, o correspondente ao Tennessee Williams, que é uma coisa de qualidade, mas completamente transversal. Não é elitista, não é dirigida a um público de 15 pessoas. É possível em todo o lado, porque não há de ser possível em Portugal? Portanto, a reivindicação da liberdade total de criação não é possível.
Tu começaste no teatro e chegaste a fundar um grupo de teatro (Teatro Ádóque), e mesmo circulando por vários meios acabas sempre por voltar ao teatro. É casa para ti?
Sim, completamente. O teatro tem um lado litúrgico que ainda hoje me consola. Entro num teatro, seja para representar, ou para ir ver e há qualquer coisa de igreja para mim. Há qualquer coisa de cerimonial, misterioso, transcendente que o cinema não tem para mim e a televisão menos ainda. Há qualquer coisa no teatro que é palpável, como a poesia. Parece que o teatro tem propriedades mágicas, pode mexer com a vida das pessoas. Gosto de fazer parte da missa que o teatro proporciona.
E agora, celebrados os 50 anos, o que é que se segue?
Vou fazer uma peça no Porto, de Janeiro a Março, com gente nova, que não conheço. É com uma companhia chamada A Turma, do Tiago Correia, que escreveu um díptico sobre os problemas da imigração. A primeira [peça] chamava-se O Salto, agora escreveu a segunda, que se chama Sul. Estou muito contente. É, mais uma vez, uma pessoa que não conheço, de uma geração diferente a querer trabalhar comigo e fico muito agradecido por isso.
Foi daquelas que aceitaste prontamente?
Logo, logo, logo.
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