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Não foi no Halloween, como se esperava. Mas é certamente um pesadelo antes do Natal. Um pesadelo gótico, como Tim Burton gosta. O realizador de Eduardo Mãos de Tesoura cedeu finalmente ao apelo da televisão e tem uma série a estrear na Netflix. Wednesday chega ao streaming hoje, 23 de Novembro (uma quarta-feira, naturalmente), e centra-se na retorcida personagem que lhe dá nome, a filha mais velha da Família Addams, agora adolescente. Mórbida, impaciente, mal-humorada e implacável.
A Família Addams nasceu nos anos 1930, na revista The New Yorker. Era uma tira do cartunista Charles Addams, que ali a foi publicando ao longo de meio século, invertendo e satirizando o conceito de família perfeita nos EUA. Uma família alienada, ignorando que todos à sua volta os consideram excêntricos, bizarros. A banda desenhada deu o salto para a televisão em 1964, com a ABC a transformar a história do clã numa série. Depois, continuou a ser adaptada, fosse para o pequeno ou para o grande ecrã, para videojogos ou mesmo para a Broadway. As mais recentes adaptações foram dois filmes de animação para o cinema, com vozes de Oscar Isaac, Charlize Theron e Chloë Grace Moretz. Mas são os filmes do início dos anos 1990 que persistem na memória colectiva.
Esses filmes lançaram Barry Sonnenfeld como realizador, mas não era ele que os produtores queriam. O realizador de Jogos Quase Perigosos e MIB – Homens de Negro revelou em Outubro passado que a primeira escolha para rodar A Família Addams (1991) havia sido Tim Burton, que estava ocupado com os seus Batman e por isso não aceitou. Trinta anos depois, voltou a surgir uma oportunidade – e Burton aproveitou-a, para espanto dos criadores Alfred Gough e Miles Millar. Três dias depois de lhe enviarem o guião para o piloto, o realizador ligou-lhes. “Tinha muitas questões sobre o trabalho que já tínhamos feito em televisão, sobre como é que o tínhamos conseguido fazer. Ele adorou a ideia de haver tempo para passar com a Wednesday, para explorar a personagem, e que não tivéssemos que despachar tudo numa hora e 45 minutos”, disse Gough à Vanity Fair, em Agosto. “Ele estava interessado em saber qual a direcção que íamos dar à série, ao mistério.” Aceitou.
Apesar de já ter feito pequenas coisas, Burton nunca teve um grande projecto em televisão. Para todos os efeitos, é uma estreia. Daí as perguntas a Gough e Millar, responsáveis por exemplo por Smallville. O realizador mobilizou então a sua equipa para transformar Wednesday numa obra estética e excentricamente sua. “A nossa ambição era fazer um filme do Tim Burton com oito horas”, afirmou Millar, na mesma conversa com a Vanity Fair. Para isso, Colleen Atwood foi um elemento essencial. Com quatro Óscares para melhor guarda-roupa (Chicago, Memórias de uma Gueixa, Alice no País das Maravilhas e Monstros Fantásticos e Onde Encontrá-los), a figurinista é uma colaboradora habitual de Burton e foi ela que ajudou a moldar o universo gótico em que a série se passa. Tim Burton, por seu lado, definiu o “imaginário” da história, reaproximando as personagens do original de Charles Addams, e dirigiu quatro dos oito episódios (Gandja Monteiro e James Marshall fizeram os restantes).
Uma das consequências de voltar às tiras de BD significa, face aos filmes dos anos 1990, voltar a ter um Gomez, o pai Addams, de estatura mais baixa do que Morticia, a mãe. Por isso, onde estava o sedutor Raul Julia está agora o entroncado Luis Guzmán (Narcos), e onde estava Anjelica Huston está agora Catherine Zeta-Jones (Chicago), no mesmo vampire-chic. São eles os pais extremosos cujos sinais de afecto a filha não suporta. Christina Ricci, uma menina na altura, dá lugar à adolescente Jenna Ortega (a Ellie de You), mas a actriz volta à Família Addams – numa participação especial no papel de Marilyn Thornhill, a "mamã" que toma conta das menores no dormitório da escola.
Wednesday é um elemento perturbador em cada escola por onde passa, sem pudor de libertar um cardume de piranhas numa piscina para vingar o irmão (Isaac Ordonez). Nos últimos cinco anos, foi expulsa de oito. O que leva os pais a inscrevê-la no que a própria chama de “purgatório juvenil”, a Nevermore Academy, cuja directora é a altiva Larissa Weems (Gwendoline Christie, A Guerra dos Tronos). Mas, enquanto não concretiza a fuga que arquitecta ouvindo “La Llorona” na grafonola, Wednesday vai tentar resolver uma misteriosa vaga de homicídios que assola a pequena cidade. Ela sente que pode fazer qualquer coisa, só não sabe se consegue sair da sombra da mãe. O que a deixa ainda mais impetuosa. E é bom que ninguém se ponha à sua frente. A não ser que seja para a ver na televisão.
Netflix. 23 de Novembro (estreia)
Este artigo foi originalmente publicado na Time Out Lisboa — Outono 2022.
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