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Xiran Jay Zhao: “É importante contrariar a ideia de que as mulheres têm de engolir sapos”

Xiran Jay Zhao estreou-se com ‘Viúva de Ferro’, editado em Portugal pela Saída de Emergência. A sequela está prevista para este Verão e os direitos já foram vendidos para o grande ecrã.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Xiran Jay Zhao
© Xiran Jay ZhaoXiran Jay Zhao
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A sua estreia na literatura deu-se em 2021, com Iron Widow (Viúva de Ferro, na edição portuguesa da Saída de Emergência, publicada em 2022), mas o seu nome começou a ser conhecido um ano antes, por causa do canal de Youtube, que criou de propósito para criticar o live-action da Disney Mulan. Imigrante de primeira geração, Xiran Jay Zhao — que se identifica como pessoa não-binária — nasceu na China, mas cresceu no Canadá, onde se formou na Universidade Simon Fraser de Vancouver antes de trocar a bioquímica pela escrita.

Aproveitámos a sua presença na última edição da Comic Con Portugal, que se realizou na Altice Arena no passado mês de Dezembro, para conversar sobre o seu percurso e sobre o romance de ficção científica mecha [com robôs gigantes, geralmente bípedes e controlados por humanos]. Vencedor de um British Science Fiction Award na categoria de “Melhor Livro para Jovens Leitores”, Viúva de Ferro – que poderá vir a ser adaptado ao grande ecrã – leva-nos até um futuro distópico, onde as fronteiras de Huaxia são defendidas por gigantescas máquinas de guerra movidas pela energia vital de um piloto e da sua concubina.

“Os portugueses são os únicos capazes de pronunciar [o meu nome] como deve ser”, confidencia-nos Xiran. “É a minha primeira vez cá [em Portugal] e, não sei o que esperava, mas estou a achar tudo super tranquilo, não há pressa nenhuma para fazer as coisas”, diz entre risos, antes de nos contar como foi parar à indústria literária. “Sempre sonhei em publicar [um livro] e, para dizer a verdade, dei cabo das minhas notas na faculdade porque estava mesmo a esforçar-me para fazer acontecer. E, como terminei o meu curso no pico da pandemia, não tive outra alternativa senão ficar em casa. Escrevi Viúva de Ferro no meu último semestre e consegui vendê-lo um mês depois. Muito honestamente, não foi [vendido] por nada de especial, por isso os meus pais estavam naquela de ‘isto nunca te irá sustentar, portanto tens mesmo de arranjar um emprego’. Ainda cheguei a candidatar-me a uma especialização médica, mas não fui aceite e os meus pais ficaram duplamente desapontados.”

Xiran Jay Zhao
Viúva de Ferro e Zachary Ying and the Dragon Emperor, de Xiran Jay Zhao

A verdade é que, depois do sucesso de Viúva de Ferro, Xiran desencantou mais uma história com tudo para dar certo. Ainda sem tradução para português, Zachary Ying and the Dragon Emperor – o primeiro título de uma nova série de fantasia contemporânea para crianças e jovens – foi publicado em Maio de 2022, mais ou menos oito meses depois do seu primeiro livro. “Foi vendido em leilão [por uma quantia de seis dígitos], o que me ajudou a convencer os meus pais de que era possível sustentar-me só a escrever livros”, partilha.

“Poucos meses depois, em Setembro de 2020 [ainda nenhum dos seus livros estava publicado, apesar dos lançamentos já terem sido anunciados], saiu o live-action Mulan, que me desiludiu tanto [por causa das imprecisões culturais] que criei um canal de Youtube de propósito para partilhar um desabafo de 30 minutos, que se tornou viral e me valeu oitenta mil seguidores de uma só vez”, conta Xiran. “Tive de fazer por isso, porque o meu livro foi editado por uma subsidiária da Penguin Random House e nunca teria o mesmo orçamento para marketing que muitos outros títulos. Foi do estilo ‘agora tenho de ir para o TikTok promover o meu livro, caso contrário não há carreira para ninguém’.”

Xiran Jay Zhao
DRXiran Jay Zhao prometeu que, quando publicasse o seu primeiro livro, vestiria um fato de vaca para a fotografia de contra-capa. E cumpriu

Quando se lembrou de combinar História Chinesa com mitologia asiática e ficção científica mecha, Xiran Jay Zhao estava longe de imaginar que Viúva de Ferro agradaria para lá do nicho. Inspirada em Darling in the Franxx, onde pares de crianças pilotam robôs gigantes para defender a civilização humana, a ideia para o livro surgiu em conversa, ao tentar reimaginar o que esse anime de ficção científica e romance poderia ter sido. “Se tivesse sido eu a escrever, teria sido tão diferente que acabei por pensar que tinha uma história original para contar.”

Tal como no anime, as máquinas de guerra – que, em Viúva de Ferro, assumem formas inspiradas em criaturas míticas do leste da Ásia – têm de ser pilotadas por um casal, composto sempre por um homem e uma mulher. A razão para esta regra é um dos maiores mistérios da história, que não só reinterpreta a vida de Wu Zetian, a única mulher na história da China a ocupar o trono imperial, como nos leva até uma Huaxia distópica, uma versão futurista da China medieval, constantemente atacada por criaturas alienígenas, com as quais a humanidade só consegue lutar com recurso às mecha gigantes.

“Adoro as cenas de batalha. [Escrevê-las] é como jogar pingue-pongue, porque preciso de imaginar o que os protagonistas conseguem fazer e o que os antagonistas têm de fazer para os derrotar e vice-versa. Faço isso até chegar ao final [de cada cena] e depois leio novamente e adiciono mais detalhes. É como renderizar uma cena CGI, e acho mesmo divertido coreografá-las. Tenho mais dificuldade, por exemplo, com as conversas sentimentais. O primeiro encontro entre Wu Zetian e Li Shimin custou-me a escrever. A personalidade do Shimin é muito diferente daquela que imaginei originalmente, porque percebi que a Wu Zetian nunca o toleraria. Foi preciso reescrever totalmente o personagem e essa cena em particular umas quantas vezes”, confessa.

Viúva de Ferro
© SetodraRaposa de Nove Caudas, controlada por Yang Guang e a sua concubina, em ‘Viúva de Ferro’

“Apesar de pensar em mim como uma pessoa bastante forte, a verdade é que sempre fui muito influenciável em determinadas situações, porque me educaram assim, a priorizar os outros. Quem nasce mulher sofre muito mais abusos. Neste aspecto, a Wu Zetian é muito mais forte do que eu, e penso que é de facto importante contrariar a ideia de que as mulheres têm de engolir sapos, ser boazinhas e escolher a abordagem moralmente superior. Bem, a Wu Zetian não vai fazê-lo.”

Ao denunciar o sistema patriarcal que condena as mulheres a uma situação de submissão e sofrimento, Viúva de Ferro explora também temas como identidade, igualdade de género e liberdade. “Há momentos em que a Zetian questiona as outras concubinas, mas a verdade é que, muitas vezes, as mulheres não têm escolha. A própria Zetian tem de perceber isso e aprender como o respeitar e ser feminista ao mesmo tempo.”

Apesar de sentir que o mundo está a ficar mais tolerante com ideias anteriormente consideradas demasiado progressistas, Xiran defende que ainda há muito por fazer pelo feminismo. “A minha família, por exemplo, tem ideias muito rígidas sobre como a vida deve ser vivida. Os meus pais continuam a tentar convencer-me a casar e a ter filhos. Já lhes disse inúmeras vezes que não é isso que quero fazer.” Talvez a mensagem se torne mais clara quando Viúva de Ferro e a sua sequela (Heavenly Tyrant, no original) chegarem ao grande ecrã. “É excitante, mas estou a tentar manter-me emocionalmente distante, porque nunca sabemos o que é que Hollywood planeia fazer ou se o projecto terá sequer luz verde. Só tenho autorização para me entusiasmar quando começarem a filmar. Mas, se acontecer, adorava fazer parte do processo e ter o máximo de controlo criativo possível.”

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