Encontrar uma boa batata é uma coisa tramada. Enfardamos batatas todos os dias e todos os dias comemos más batatas. Senão, veja-se. Comemos sopa e a sopa está estranha: em metade das vezes é da batata. No que respeita a batatas fritas, o mesmo drama: moles, partidas, sensaboronas. Comemos e andamos, a fritura disfarça. A batata cozida é mais difícil de mascarar: ou estão aguadas ou farinhentas ou sobrecozidas ou tudo ao mesmo tempo.
Tornou-se tão banal comer más batatas que já nem protestamos. Já não reflectimos sobre essa catástrofe diária. A batata, hoje, é só um shot de hidratos. Está no prato para encher, para compor o estômago, para saciar. Não é suposto amá-la ou odiá-la. A batata, hoje, é como um vibrador: serve para preencher a pessoa durante uns minutos.
A não ser que seja a batata d’A Courense (não confundir com Os Courenses, em Alvalade). A batata d’A Courense ressuscitou em mim o prazer do tubérculo que salvou o mundo da fome. Foi pela batata que A Courense me levou, primeiro. Apareceu-me nuns chocos grelhados: estavam óptimos os chocos, tamanho médio – como devem ter –, mas a batata é que me encantou. Bem cozida, mas com a consistência de um pudim firme, cheio de sabor. Fiquei tão entusiasmado que inquiri o empregado, no caso o filho do dono – “fale-me da sua batata”. “Ui, a nossa batata é especial”, disse-me ele, com um sorriso na cara. “Chega aqui ainda cheia de terra”, atirou em andamento, duas travessas nas mãos, e mais não disse, que a casa estava cheia, como sempre está.
Fui lá quatro vezes e nunca em hora de ponta. Pelas 13.30, a fila pode ser dissuasora. O melhor é ir muito cedo – às 12.45 já pode ser tarde – ou muito tarde – a partir das 14.00 abrem vagas. A casa só serve aos almoços e também isso explica a qualidade. Uma casa que só abre ao almoço tem tempo para se preparar. Fecham-se as portas e começa-se logo a preparar a refeição do dia seguinte: a sopa, os pratos do dia, os doces caseiros – ah, os doces caseiros!
E, no entanto, não se empolguem os foodies. Isto é só um restaurante de bairro, com carta típica de restaurante de bairro, que serve almoços. Não há patine de coisa tradicional, não há alhos nem presuntos pendurados, nenhuma pretensão gourmet, nenhum embrulho, nenhum prato recuperado do receituário da margem direita do Coura. Da rua, parece um snack bar, uma dezena de lugares apertados à entrada, nas traseiras outra sala, igualmente pequena, mas com mesas partilhadas e sempre a rodar e com vários cartazes antigos alusivos a comidas e bebidas – “são todos originais, não há cá cópias” — como os da Licor Beirão.
É aqui que se senta uma clientela fiel e feliz, a quem a empregada Laura – simpática e competente – e o patrão Manel– cáustico e competente– tratam pelo nome, uma mistura de vizinhança reformada de Benfica e do Alto dos Moinhos, com o pessoal de trabalho das Torres de Lisboa, entre eles vários jornalistas que coincidem numa espécie de omertà para manter o sítio desconhecido. Foi um desses jornalistas habitués quem me contou que o restaurante é muito antigo e que os actuais proprietários não são de Paredes de Coura, como os courenses fundadores, mas de uma outra povoação no Norte.
Não importa isso, importa que a comida que lá provei tenha sido sempre muito boa. Há uma feijoada que dá para dois, apurada, com bons enchidos e muito entrecosto. Há sempre peixes frescos para grelhar. Há bifanas, entremeada de novilho com óptimas batatas fritas, cozido ao sábado e, ex-líbris da casa, bacalhau à lagareiro à sexta-feira, uma posta completa, demolhada na perfeição, que vem acompanhada com grelos e batatas pequenas a murro (lamentavelmente menos consistentes que as usadas para cozer) – e tudo isto custando entre os 6,5 euros e os 9 euros.
Muita gente vai lá, precisamente, por causa do bacalhau. Não é fácil encontrar bom bacalhau, de cura e demolha tradicionais. Bacalhau é caro e demolhá-lo é uma ciência difícil, que requer frio, tempo e planificação. Daí que até em sítios de chef, com cozinha a baixa temperatura e louça Bordallo, ande a usar-se do congelado pré-demolhado, quase sempre mais húmido e flácido e, portanto, menos bacalhau. Quando temos uma posta a sério, o preço sobe. Não é fácil, por isso, encontrar um bom lagareiro, bem servido, por menos de 12, 14 euros, sendo que este custa nove.
Tenho de falar também das sobremesas, sobretudo de um arroz doce. Gosto tanto de arroz doce que passei quatro anos de faculdade a comê-lo todos os dias na cantina. Este arroz doce não é um arroz doce, é outra coisa: os bagos para lá do ponto, o leite cremoso, raspas de limão – nem tudo foi melhor na juventude.
A Courense é só isto. E isto é tanto, hoje em dia. Mas não é para todos. É só para quem se porta bem e sabe respeitar uma casa assim, com donos assim, que sabem de onde vem a sua batata.
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