O meu amigo espantou-se com o convite “Comer feijoada brasileira às dez da manhã?!” Lembrei-lhe então que a manhã é a melhor fase do dia para provar o que quer que seja. Lavados os dentes e bebido meio copo de água morna, o corpo está preparado para digerir petróleo.
Entre as sevícias culinárias e para-culinárias que já impus ao esqueleto antes do meio-dia estão:
Prova de azeites
Degustação de conservas de sardinhas
Penáltis de licorosos
Pairing de espumantes com ostras
Prova de anfetaminas
Leguminosas com pernil fumado e chispe e linguiça calabresa é, portanto, muito indicado para o acordar. No Brasil, terra que influencia esta Lanchonete, a malta do trabalho braçal e a outra, da boémia, gostam de a comer mal o sol nasce – uns porque dá energia, outros porque ilude a ressaca.
No meu caso, nem uma coisa nem outra, mas mesmo assim fui. Cheguei pouco passava das 10.00, sábado de recolhimento obrigatório e essa sensação nova de inspirar ar fresco como se ele fosse acabar.
O local estava já composto de bruncheiros, ainda que o sítio fuja ao frou-frou com plantas de plástico, tostas de abacate e ovos Benedict. Estamos na Junqueira – bairro popular e residencial de Lisboa apertado entre a Ajuda e Belém – e a Lanchonete apanha um pouco de uma e da outra: moderninho turístico com candeeiros e balcão de aglomerado de madeira e cortiças, mas também café de bairro com chão de laje onde o vizinho idoso vai beber o galão e o neto pede as Tridente do expositor.
O restaurante ganhou fama entre a comunidade brasileira, em parte pelos pastéis de feira. Do que conheço, é o único sítio da Grande Lisboa onde a massa é fresca (na maioria é congelada e importada do Brasil) e levedada por 24 horas. Quem quiser experimentar só os pastéis (aconselho os de queijo, os de carne e os de frango com queijo catupiry caseiro), pode fazê-lo também n’A Pastelaria, no Saldanha, dos mesmos donos.
Curiosamente, os proprietários são portugueses, uma história mais comum do que se pode pensar. Os pais de Pedro Bento, à frente do negócio e da sala, emigraram para terras de Vera Cruz. Regressados a Portugal, abriram neste mesmo sítio um snack bar com balcão de alumínio. O filho pegou nele, contratou um decorador, mas não prescindiu da mão e do receituário luso-brasileiro dos progenitores.
Antes da feijoada, para abrir o apetite vieram alguns acepipes transatlânticos que entram nos menus de brunch, aposta da casa pré-Covid. Pão de queijo, coxinhas de carne de sol e uma coisa aparentemente tonta mas óptima: pão na chapa com requeijão. Na verdade, trata- -se de duas metades abertas de pão de leite que foram à chapa já com a manteiga, deixando aquele gosto queimado de quando pomos pão com manteiga na torradeira. São servidas com o queijo à parte, sendo que o requeijão é transformado num creme, mantendo o típico sabor lácteo.
O leitor exclamará: pão com manteiga e requeijão! Os humanos dividem-se entre os que gostam de pão com manteiga e queijo e os que odeiam pão com manteiga e queijo. Eu adoro. A excepção são os queijos de ovelha. Mas um cabra curado numa torrada de manteiga é excelente. O mesmo para as rodas dos Ilha de São Jorge. E, fiquei a saber, para o requeijão.
Avancei, por fim, para a feijoada, prato do dia às sextas e sábados. À minha volta, todas as mesas completas, só eu atacava o feijão. Perderam eles. Vinha tudo servido no prato, menos o molho lambão, um pico de gallo fresquíssimo mas sem picante, só cebolinha, pimento, vinagre e salsa. Couve saborosa, feijão do pequeno, carnes do porco, linguiça e pedaços de pernil fumado. Farofa por estalar na frigideira, laranja por descascar.
No final, preparava-me para rebolar dali para fora mas a empregada de mesa tinha outra ideia. “Agora tem de provar os doces, temos muita variedade.” Cajuzinho (de amendoim (?)), pavê (espécie de bolo de bolacha com leite condensado e coco ralado), profiteroles (de leite condensado), brigadeiros (de chocolate e leite condensado). Tudo bom e caseiro (e cheio de leite condensado).
Às 11.30 da manhã estava despachado, pronto para ir desmoer no calçadão do Tejo. À tarde dormi, feliz por não ter de fazer lanche, nem jantar.
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