O Acarajé é um pastel feito de pasta de feijão fradinho, frito em óleo de dendê, aberto ao meio e recheado de vatapá e camarão seco. A descrição soa ao que sabe: um petisco inventado por uma baiana de saia de roda num terreiro de candomblé em Salvador da Baía, entre rezas vudus e orixás.
Anda aliás uma baiana por aqui, entre a cozinha e a sala, Carolina Silva de seu nome, alma e cozinheira chefe deste extraordinário bloco de samba e comida, sem turistas nem portugueses, quase só imigrantes brasileiros do trabalho com saudades de casa e sequiosos de fim-de-semana e desopilanço.
É sábado e quando o restaurante abre para jantar, às 17.00, já há gente à porta. Só por isso sabemos que é um fenómeno. Pelas 19.15, começa o segundo turno e pelas 21.00 está montada a festa. Mesmo não havendo música ao vivo (como é costume), há um ruído festivo, a música das colunas ofuscada pela alegria dos convivas, gente sentada e de pé, chopinho na mão, beijos e abraços, encontros e reencontros, novos e velhos, representantes de todas as siglas do LGBTQIAPK – muito axê, diria a Carol deste Acarajé, que agora acorre às mesas perguntando se está tudo bem.
Na verdade, não está tudo bem. Uma análise objectiva obriga-me a reconhecer isso. A segunda entrada demora meia hora a chegar, o prato principal quarenta minutos. Nesses intervalos, os ditames do ofício obrigam-me a avaliar o espaço: a um antigo restaurante farsola do Bairro Alto terão acrescentado cadeiras brancas de plástico e pinturas africanas de artista do metropolitano, nada a bater com nada.
Sucede que tudo isso é pouco quando temos um acarajé na mão. O serviço tem noção disso: o acarajé com imperial é uma urgência. Mesmo para quem acaba de chegar e ainda está lá fora à espera, há um acarajé anti-stress que deixa o cliente saciado. Conseguimos identificar quem é português pela forma como o domina. O acarajé é um enorme pastel a transbordar de molho e coisinhas – tomate e cebola picados, camarão seco – e por isso vem dentro de um guardanapo, dentro de um papel, dentro de um cesto. É mais difícil de manusear do que esses hambúrgueres parvos de quatro pisos. E o sabor não é para todos. “Ou se ama ou se odeia”, avisa o empregado. Ama-se, vai-se amando cada vez mais.
Às 21.30 a turma está eufórica e indiferente ao colapso dos empregados. Em vez de reclamarem dos atrasos, abraçam-nos como amigos de boteco. Ajuda, ainda assim, que a carta seja curta e não mude. A abrir, há o acarajé, o caldo de feijão, a linguiça (que é a salsicha de churrasco) acompanhada de farofa e palitos de mandioca de fritura perfeita (óleo limpo, tenros por dentro). Nos principais, destaque para os três escondidinhos, para o bobó de camarão e para a moqueca de peixe. Aos sábados havia rabada mas não calhou nesta visita e é uma pena: rabo de boi, puré de mandioca e salada de agrião é uma combinação genial. O que não falha é a feijoada à brasileira, servida especialmente ao domingo, único dia em que o estabelecimento abre ao almoço (e fecha quando o orixá manda).
Aviado o acarajé, segue-se o escondidinho mais tradicional, o de carne de sol. Carne de sol não é carne seca, tem mais humidade e menos sal. É feita de um corte da parte traseira do bovino. Ao contrário do que o nome indica também não é seca ao sol, mas tapada, ao ar. O escondidinho aparece servido num prato de barro que veio do forno, onde gratinou. Por baixo de uma capa de queijo coalho, está um empadão de mandioca, com fiapos da carne. Já comi noutros sítios escondidinho, mas a versão da Carol acrescenta-lhe um picadinho de cebola e tomate crus cheios de acidez e graça.
Extraordinário também o bobó de camarão, prato afro-brasileiro típico da culinária da Baía, que volta a ter no dendê (óleo de palma não refinado, muito usado em Angola e em toda a costa oeste africana), o toque distintivo, com os camarões grandes (calibre 40-50) e firmes imersos na molhanga de mandioca, leite de coco, tomate e pimento. A moqueca de peixe, por sua vez, tem postas de cação dentro de um caldo com pimento e tomate às rodelas, como uma caldeirada com dendê em vez de azeite.
Para sobremesa a mesma simplicidade. “Quindim ou bolinho de estudante?” Os dois. O quindim é um pudim de coco, muito bem feito, mas o bolinho de estudante é que é. Imagine-se uma fartura feita de farinha de mandioca e coco: por fora crocante, por dentro como uma goma, com açúcar e canela servidos ao lado para temperar.
Haveria de voltar ao Acarajé numa sexta-feira, bem menos caótica, com tempo para os empregados explicarem os pratos, rirem, descontraírem. “Fazemos tudo na casa e no momento”, diriam. Quem serve sabe da sua cozinha, ao contrário do que sucede nesses restaurantes da moda com chefs de nomeada onde impera a ignorância. E sabe que o ambiente de um restaurante não se faz de mosaico hidráulico e pratos Costa Verde mas de pessoas, e estas pessoas têm a Baía na cabeça e no corpo.
Em síntese: o Acarajé da Carol é um oásis nesta cidade de fake restaurants. Cozinha emocional é isto. Bobós e escondidinhos e feijoadas – ou mesmo só um acarajé (são uma refeição, na verdade) para comer nas mesas da rua e ensopar de cerveja, numa roda de amigos. Aos dias de semana é tudo mais tranquilo e expedito, o que pode não ser a coisa mais divertida. Como diz a Carol: “Um xeiro, meu povo!”
Crítica de Alfredo Lacerda publicada a 02/05/2019
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