A obra Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, o protagonista come uma madalena que lhe muda o ânimo. “Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres”, conta o autor.
Ora, a minha madalena mais potente é o ramen, estrela deste Afuri. E o Afuri é a única casa em Lisboa a fazer, hoje em dia, a famosa sopa japonesa como deve ser – todos os dias, ao almoço e ao jantar.
Digo “hoje em dia” porque já houve outro restaurante de ramen a sério na cidade. Chamava-se Assuka e tem uma história triste. Já a citei aqui várias vezes, tantas quantas falei de ramen. E hei-de continuar a fazê-lo por honra à história e a Francisco Lopes, a primeira pessoa apaixonada por noodles que conheci.
Francisco Lopes aprendeu a arte em Paris, no restaurante japonês Higuma, e veio uns anos depois para Lisboa espalhar umami em tigelas fumegantes, primeiro nas Janelas Verdes, depois em São Sebastião da Pedreira. Cheguei a ir ao tal Higuma e no regresso disse-lhe. “O seu ramen é melhor do que o do Higuma”.
Estava todavia relativamente sozinho nesta devoção. No final dos anos 90, princípios do século XXI, ao balcão do Assuka sentava-me eu e mais meia-dúzia de pessoas exóticas a sorver massa. Na altura, o que era sofisticado era encher o bandulho com rolinhos de sushi, essa outra novidade, espectáculo a que Francisco Lopes assistia triste, porque sabia não ser sua especialidade.
O Assuka fechou sem glória, depois de investir em instalações maiores e mais luxuosas. E Francisco Lopes nunca mais foi visto em Lisboa. Criaram- se mitos e lendas sobre o seu desaparecimento, ainda hoje tema de conversa no meio. Eu estou convicto disto: houvesse então a febre de ramen que hoje se sente em Lisboa e talvez ainda o tivéssemos por perto.
Não tem culpa o Afuri. O que me exalta é a excitação de tantos, agora, porque vieram de Londres ou de Nova Iorque ou de Tóquio com a dica, como se de repente tivesse nascido um prato cool a leste do Ganges.
O ramen popularizou-se depois da Segunda Guerra Mundial, no Japão. Mas a base, como de tantas coisas cool antes desconhecidas, é chinesa. Foram os chineses que exportaram a ideia de fazer caldos à base de ossos e legumes e imergir neles massa. Se quiserem a prova, vão ao Martim Moniz. Os japoneses começaram por chamar-lhes noodles chineses, mas depois autonomizaram e sofisticaram o prato. Para além dos ossos, criaram uma segunda camada salgada de sabor, a que chamaram de tare, e introduziram extracto de katsuobushi (flocos secos de bonito, o peixe da família do atum) ou de outros peixes secos, como sardinha ou anchova, ou até de mariscos e bivalves.
O Afuri é relativamente recente, mas uma marca forte na terra natal. Apareceu há dez anos, nas imediações da montanha com o mesmo nome, no Japão. Hoje, tem uma dúzia de restaurantes em Tóquio, onde é referência obrigatória, e outros dois em Portland, nos EUA, onde é um conceito mais sofisticado.
No Japão, como em Portland, como em Lisboa (cidade escolhida para a primeira experiência europeia), os pratos de assinatura são os ramen de yuzu, o famoso citrino japonês. Mas interessa-nos começar pelos clássicos, porque é essa a nossa madalena: nada tem a força retemperadora de um ramen clássico tonkotsu, feito à base de ossos de porco cozinhados durante quatro horas.
Mas vamos à essência do ramen. As opiniões divergem sobre o que é essencial, se o caldo se os noodles. Ambos, e ficamos todos felizes. O caldo pode ser mais leve. Neste caso o Afuri usa uma técnica própria – o chintan –, de cozimento a baixa temperatura, para separar a gordura de frango e obter um líquido translúcido e elegante para os shio, shoyu ou yuzu ramens; ou pode ser mais denso, e nesse caso é fervido num panelão com ossos de porco onde cartilagens, tutano e ossos se vão decompondo até formar um líquido denso e leitoso – o paitan. É este que, fatalmente, me deixa num estado de euforia quieta que se evidencia por uma salivação intensa e laivos de alegria em dias escuros.
Quanto à massa, é necessário referir outra vez o Assuka. Não voltou a haver um restaurante a fazer os noodles frescos para ramen. E continua a não haver – pelo menos até que abra o Ajitama, o restaurante que nascerá do supper club com o mesmo nome. Ainda assim, os noodles do Afuri são os melhores que comi no género industrial. Ao que fui informado, são feitos especificamente, em Nova Iorque, sob a atenção e consultoria de Taichi Ishizuk, o CEO do Afuri, com residência em Portland, mas que tem passado algumas temporadas em Lisboa.
Há noodles de diferentes formatos e sabores. Os do tonkotsu shio – o meu ramen preferido do Afuri – são fininhos, feitos com farinha de trigo; os do tonkotsu tantamnen – com cobertura de carne de porco picada em vez do tradicional chasu, peça da barriga do porco assada – são como um esparguete grosso e delicioso, tal como os que entram nos tsukemen, estes aparentemente com mistura de farinha de trigo e centeio, variedades servidas frias e secas, para serem banhadas num molho de soja com sésamo, à parte.
Quanto à cobertura, podem variar, mas o tonkotsu aqui vem com ovo nitamago, cebolo, pickles de gengibre, cogumelo kikurage e, claro, o porco chashu e sésamo.
Fora os tonkotsu, há um outro milagre de umami, que é o ramen truffle miso. O truffle miso pode bem ser a coisa mais parecida com a madalena de Proust que um vegetariano há-de comer em Lisboa. Por efeito da fermentação do feijão que entra na pasta dissolvida no caldo, bem como da acção dos cogumelos shitake, consegue-se um efeito de boca cheia e coração quente, muito semelhante ao provocado pelo tonkotsu e outras coisas feitas de proteína animal.
Por fim, é verdade que há muitos outros pratos na carta do Afuri para além de ramen, a maioria acima da média. São os casos das gyosas, do frango frito tori karaage, do bacalhau preto com miso, do harumaki de lagosta ou do óptimo tiramisù de matcha. Mas é sempre o ramen que lá me leva, e já foram mais de meia-dúzia de vezes.
Sobre o preço, dizer o seguinte: ramen é caro. No coração do coração do Chiado, pior. Não se vê, é certo. Não há produtos nobres, a carne é pouca, meio ovo, bambu, rebentos de soja. Mas conhecendo o método, percebe-se. Dá muito trabalho, leva muito tempo. Eu faço muitas vezes isto: peço um ramen e um copo de água. São 13 euros. Muito pouco para salvarmos o dia.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.