A Ideia que dá, mal entramos, é que na noite anterior a loja ainda albergava um desses snack-bares em que a Rua de Santa Marta é useira e vezeira. Alguém teria chegado ali na véspera, tirado das prateleiras as garrafas de JB e de Licor Beirão – e tudo – e reaberto. Os armários estão nus, o expositor está nu, o balcão está nu.
A casa, todavia, encontra-se lotada. De tal forma que a dona tem de transferir os seus pertences, arrumados na mesa ao canto, para nos sentar. “Peço desculpa, são as nossas coisas”, diz, afobada, num inglês esclarecedor.
Adivinha-se desde logo a falta de espaço também na rectaguarda. Pelas 13.15, a zona de passe já está atulhada de louça e, lá atrás, pela janelinha que dá para a cozinha, vemos um solitário e atarefado Jesse Luong. De acordo com o que se escreveu nesta revista há umas semanas, Jesse Luong partilha com a anfitriã, Hoàng Minh Trang – para além da simpatia e de uma ortografia complexa –, o lar.
Hoàng Minh Trang trata rapidamente de nos instalar e é expedita a atoalhar (com papel). Mas parece haver uma preocupação latente, como se estivesse sempre a correr atrás do prejuízo. Quando lhe pedimos a báhn mì, essa sandes híbrida que os franceses plantaram em Saigão, faz um esgar de sofrimento atroz. “Lamento, não recomendo a báhn mì. Acabaram alguns ingredientes, vamos ter de preparar do início.” Nós insistimos, nós esperamos. Tínhamos ouvido falar na barriga de porco crocante que a recheia – e barriga de porco ainda havia.
A báhn mì há-de vir. Percebemos que uma coisa que terá acabado foi a baguete original, servida nas outras mesas. A nossa é das pré-congeladas de supermercado, branquinha, a da mesa do lado também é dessas industriais mas lustrosa e ligeiramente mais rústica. É preciso dizer-se que a báhn mì não quer pão pesado, nem sourdough. A báhn mì quer um pão leve e estaladiço.
De resto, impecável. O pão devidamente esventrado, a côdea bem tostada. Deliciosa também a barriga de porco. Faltou apenas um kick no conjunto, fosse porque o paté tradicional não se notou, fosse porque se economizou em coentros, pickles e malagueta. “Podia ter pedido mais malagueta, nós arranjávamos”, prontificou-se Hoàng Minh Trang.
Antes, já tínhamos atacado uma salada de carne absolutamente clássica: lâminas de vaca marinada, meias luas de cebola (devidamente expurgada do sabor mofoso), belos coentros em folha, pepino estaladiço, molho agridoce e, por cima, amendoim quebrado – condimento habitual da cozinha do Sudeste Asiático, que atira o prato para outra dimensão.
Há ainda de vir o bo bun, outro clássico, este de noodles de arroz (sobrecozidos) com rolos Primavera (spring rolls) caseiros à mistura, bem bons, rabadilha de vaca grelhada, mais amendoins e pickles doces (pouco visíveis) e uma molhanga escura a ensopar tudo. E, por fim, o pho de galinha, o prato menos interessante do almoço. Não que estivesse mal, mas o caldo não fez juz à complexidade aromática de um verdadeiro pho – nem ao preço –, parecendo uma canja.
Das duas sobremesas, boas as bolas mochi de massa de arroz, com recheio de feijão preto, feito na casa, mas igualmente gostosa a banana em calda de coco e amendoim.
Em síntese. Estamos no domínio da cozinha vietnamita tradicional, sem modernices, sem atalhos nem processados de supermercado chinês. O registo é familiar, no sentido em que parece que estamos na casa dos proprietários.
Há, contudo, coisas a melhorar. Dá a ideia que ainda se está a afinar a logística da cozinha, ainda amadora e com navegação à vista, e também que se corta em ingredientes que se pensa serem agressivos ao paladar português, como o molho de peixe e a malagueta.
Em todo o caso, numa cidade onde escasseiam restaurantes vietnamitas, o AnNam vale ouro. Oxalá invista nas prateleiras, no agridoce e na capsaicina.
*Os críticos da Time Out visitam os restaurantes de forma anónima e pagam as refeições.