Há um novo restaurante em Alcântara onde cabe o mundo todo, de maneiras criativas e improváveis. Fomos conhecer o chef André Fernandes e o seu Attla sazonal.
Um italiano reprovaria o conglioni de alheira de caça com chalotas grelhadas, satay de abóbora e crumble de broa. Seria um ultraje à massa, que numa versão clássica deveria ser antes com um molho de tomate e nunca com um molho com amêndoa, caril e leite de coco. André Fernandes admite a invenção, mas por que não? “Há coisas tão boas em tantos sítios. Gosto de pegar nas culturas e nas cozinhas todas, no melhor de tudo, e juntar num só”, explica, à mesa do seu primeiro projecto em Lisboa, o Attla, um restaurante com influências do Atlântico e de todo o atlas.
Crítica:
O eucalipto é uma árvore danada. Incendeia o país e cheira a Vicks VapoRub. Por outro lado, lembra-me a minha avó. A minha avó punha-me a inalar vapor de botões de eucalipto, quando era miúdo e estava doente. Gostava de estar doente em casa da minha avó.
A primeira vez que comi o gelado de eucalipto do Attla também houve sensações opostas. Ao princípio desconfiança – mais uma infusão parva? Depois, cremosidade, equilíbrio, a frescura de folhas mentoladas em contraponto ao conforto do chocolate do Equador, da alfarroba em areia – nada fora de pé, pouco doce, sal no céu da boca, textura, competência técnica.
Ainda assim era o eucalipto que sobressaía. E o eucalipto ainda tinha qualquer coisa de remédio para os brônquios.
Segunda visita, final de refeição. Depois de quatro pratos, estamos satisfeitos. Olho para o menu, as mesmas duas referências doces. O gelado de eucalipto impõe-se ao pudim de pimenta de Sichuan e granita, que também é excelente. Agora é uma música conhecida, faz disparar o coração como Beyoncé no Coachella, conforta como um pijama de ursinhos ou leite com Pensal. Eis a madalena de Proust, eis-nos outra vez a viajar para a nossa infância feliz.
Na cozinha do Attla tudo é próximo e distante, estranho e familiar. Mesmo em pratos em que reconhecemos uma combinação, há sempre um elemento desconhecido, um desafio. É assim com as línguas de bacalhau e molho pil pil. Por um lado, remetem para o célebre bacalao basco: emulsão de azeite, gelatina das línguas, alho e chilis; mas não estamos à espera que isso venha com ervilhas frescas e menta. Da mesma forma, os espargos braseados são comuns e aqui estão perfeitos na sua crocância fumada; mas o sauce maltaise, molho adocicado de laranja e ovo, faz-nos questionar o conjunto, até que ele se una na garganta e no espírito.
Normalmente, acontece assim com os pratos do Attla: mastigamos silenciosamente, trocamos olhares, será bom, será mau, até que a coisa cresce, é bom, ui é muito bom.
O receituário exótico não é fruto de uma intelectualização culinária. No caso, estamos perante experiência vivida e muitas viagens por parte do chef e proprietário André Fernandes. Aos 16 anos, estudava já numa escola profissional de cozinha em França e desde então, até há uns meses, nunca mais se fixou em Portugal. Hoje tem 31, e metade da sua vida aconteceu entre a Ásia e a América Latina, entre a cozinha Michelin europeia (aBaC, de Jordi Cruz, Plaza Athénée, de Alain Ducasse) e a alta hotelaria do Pacífico (Ritz-Carlton).
Não confundir, portanto, com esses jovens licenciados que viajam para ganhar currículo e regressam com um Noma ou um Arzak na lapela, todos inflados, quando na verdade passaram 90 dias a descascar topinambur e depois mais 90 dias a limpar cogumelos. O mundo está fundo em André, porque o mundo tem sido o seu lugar, a sua carreira. Não há sequer a história do cozinheiro com raízes portuguesas que ganhou influências internacionais. Não há raízes portuguesas. É ao contrário. A cozinha, o produto português é uma aprendizagem que André Fernandes está agora a fazer, com a ajuda do subchef João Almeida, esse sim conhecedor da comida da nação. Esta é também a beleza e a originalidade do que acontece por estes dias no Attla.
O que é reconhecível é o estilo de restaurante. Estamos perante mais um exemplo do bistrô moderno, conhecido por bistronomie, de que já aqui se falou. Produtos sazonais, técnica sofisticada sem pirotecnia, o sabor sobre a forma, ética ecológica, ambiente informal, sapatilhas e blazer, a ministra da Cultura a um canto, hipsters adultos noutro, nas colunas guitarras da África subsariana, nas paredes tábuas de cortar, tudo ensombrado por luz dedicada, velas, ambiente bom para namorar ou para jantar com amigos – decoração sem decorador, só a alma de Rita Chantre, fotógrafa, sócia e namorada de André, que desenhou o espaço.
A dimensão é outro ponto forte. São 30 lugares e 30 lugares é o tamanho perfeito: suficientemente pequeno para ser um sítio exclusivo, suficientemente grande para nos distrair de nós próprios.
A carta usa também da filosofia bistronómica sem compartimentações. Não há entradas nem principais, apenas nove pratos, cada um entre os 10 e os 13 euros, todos porções pequenas para partilhar. Fora o couvert (com pão da vizinha Gleba e manteigas de alho confitado e presunto, e de cabra com pó de clementina), a empregada sugere duas porções por pessoa, mas suspeito de que um sogro transmontano resmungaria de fome. As doses são meias doses e a carne inexistente nestas duas refeições. A representar a proteína estão apenas seis pratos marinhos. Para além das citadas línguas de bacalhau, o notável camarão de ova azul, com bisque e leite de coco cítrico, a lembrar a tom yum tailandesa; sarda braseada, com os inusitados cogumelos cordycep, pão frito e uma fabulosa espuma de bechamel de miso de cevada; a obrigatória lula em caril da sua tinta, com cabelos de batata frita, outra maravilha; a inclassificável massa de azeite glaceada com cacau, santola e sour cream; e o lírio com broccolini (da família do brócolo, à venda como “bimi”), vinagrete de flor de citrinos e flor de sabugueiro. Tudo ou bom ou muito bom ou inclassificável.
O mesmo para as restantes opções vegetarianas, onde pontificam uns cogumelos royal grelhados com espuma de couve flor, espigos e cevada crocante, que se comem como quem devora um bife com molhanga.
O elemento que une toda esta loucura de referências planetárias e produto nacional é o chili – o picante, a malagueta. Perto de 70 por cento dos pratos têm um fundo picante, quase sempre muito suave, tão suave que isso não é explícito, o picante como base, o sal de André Fernandes.
As duas únicas falhas. Sendo a ideia do restaurante a de comida para partilhar, o natural era que os pratos fossem colocados ao centro da mesa e as pessoas se servissem deles para os seus próprios pratos individuais. Não é isto que acontece. Outra fraqueza: o vinho. Há a ideia de melhorar a carta de bebidas, mas neste momento a oferta não está ao nível da comida. De resto, isso não desmerece o essencial. O Attla tem bom produto, bom gosto, bom preço e emoção. Isto, meus amigos, vale ouro. Vale estrelas. Cinco.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.