A primeira questão era saber em que campo se iria situar esta Bacalhoaria. Estaria do lado do bacalhau salgado e seco, de cura séria? Ou estaria do lado do quase-bacalhau, mascarado, insípido e tenrinho? Estaria do lado dos apreciadores de bacalhau? Ou estaria do lado do bacalhau para não aleijar turistas alemães?
Algum contexto. À frente da cozinha encontramos Ana Moura. Ana Moura foi recebida com entusiasmo pela comunidade gourmet lisboeta aquando da sua passagem pelo Cave 23, há pouco mais de dois anos. Veio de boas escolas de alta cozinha Michelin, como o Eleven (Lisboa, uma estrela) e o Arzak (País Basco, três estrelas). Sabe, portanto, de alta cozinha e isso condiz com a modernidade desta Bacalhoaria.
Para esta rubrica, valeram dois almoços em dias da semana, com a sala praticamente vazia em ambas as ocasiões, sala essa luminosa e marítima, azuis e madeiras.
Vamos ao couvert. Começou-se com os pastéis de bacalhau, fritos no momento, saborosos mas sem o factor crocância. Bom pão, manteiga demasiado fria, óptima brandada de bacalhau. Sobre as entradas. Tudo bem com o polvo com picles e abóbora assada; e ainda melhor com os espargos brancos braseados, alcachofras e um molho romesco maravilhoso, absolutamente perfeito na textura, a encher-nos a boca toda e a dar-nos prova da técnica da cozinheira, grande prato. Principais.
O “...à Braz” vinha numa estrutura piramidal, a base de bacalhau e cebola envolvidos numa mousse cremosa, por cima uns fios finíssimos a fazer o papel de batata frita. Provou-se ainda o bacalhau com chalotas e couves de Bruxelas assadas, molho de galinha assada, e o gadídeo num lombo por cima do preparado – tudo bem. Noutro dia, aversão mais exótica do cachaço assado sobre um caldo de estragão e tomate: primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Sobremesas. Óptima tarte de queijo e toffee, com nozes caramelizadas; por sugestão do funcionário, noutro dia comeu-se mousse de chocolate com chocolate branco e amendoim, mais banal.
Pelo total das três refeições pagaram-se cerca de 110 euros, ou seja, uma média de 37 euros por pessoa. Demasiado.
O bacalhau é de qualidade, sobre isso não há dúvidas. E está bem acompanhado em preparações rigorosas, adivinhando-se cozeduras lentas e delicadas, vácuos e jospers. Ana Moura é perfeccionista e isso vê-se nos molhos, nas temperaturas, nos empratamentos – tudo pontos a favor. Também não se pode dizer que os pratos sejam maus. Nada disso. São bons pratos de peixe. O problema é este. A cozinha de Ana Moura é límpida e contida – e um verdadeiro apreciador de bacalhau não gosta de bacalhau límpido e contido.
Acresce que nos raros casos em que se pisca o olho ao receituário tradicional falha a essência do prato. Quem gosta mesmo do à Braz, gosta de trincar a batata, sentir a cebola, o ovo, é essencial em cada garfada ter essas texturas. E nesta versão, como aliás noutras que há aí pela cidade, o que enche a boca é uma pasta mole e indistinta.
Mesmo um chef de alta cozinha deve jogar com as expectativas e as memórias. E quase nada da Bacalhoaria cumpriu as expectativas ou remeteu para memórias – e isto apesar de ter perguntado ao empregado pelos pratos que se aproximassem mais de receituário tradicional. Quando eu penso em bacalhau português penso em assados (mesmo assados), penso em ceboladas, polmes, couve portuguesa, penso em muito azeite. Uns dirão: mas isso era mais do mesmo. Não necessariamente, até porque não há meia dúzia de bons bacalhaus à lagareiro nesta cidade, o mesmo do cozido com todos, o mesmo do Zé do Pipo – e menos ainda juntos e ao vivo.
Outro ponto negativo. A desproporcionalidade no tamanho das doses das entradas e dos principais: os primeiros mais bem servidos do que a média, os segundos mais curtos do que a média. Para isso contribuiu a falta de hidratos, ausentes de alguns principais, como o lombo com couves de Bruxelas e o cachaço com estragão. Atenção: não há nada de mal num prato principal sem batatinha ou arrozinho – há de mal que o empregado não dê o alerta, sobretudo se não estivermos em modo alta cozinha (e não estamos), e há de mal que a proteína e o resto fiquem curtos para o preço e para o estômago.
Em síntese, parece-me que não é esta ainda a casa para Ana Moura. Das refeições que lá fiz, senti que também não é aqui o sítio para pessoas com apetite por bacalhau, daquelas que gostam das peles, da gelatina, do sal – do cheiro a bacalhau –, que tanto apreciam um lombo como um rabo, um cachaço como umas caras, uma posta como uns sames.
Talvez precisemos de 30 bacalhoarias antigas, antes de uma bacalhoaria moderna.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.