O BAHR é o restaurante e bar do renovado Bairro Alto Hotel e foi um dos projectos gastronómicos mais aguardados de 2019, muito por culpa do chef Nuno Mendes, responsável por todo o projecto de restauração do novo Bairro Alto Hotel, das cartas do restaurante às do bar e até mesmo à do room service. A sala do restaurante, o primeiro projecto de design de interiores do The Studio, é simples mas carregada de detalhes; já a cozinha é totalmente aberta e de frente para as mesas de jantar, a transferir aromas para a sala e a permitir que todas as interações entre cozinheiros se vejam. O menu é fluido, respeita as estações do ano, e ao jantar divide-se entre alguns snacks – que nem são finger food nem entradas, mas um mix dos dois –, entradas, os principais, os acompanhamentos e as sobremesas.
Crítica:
Para muitos, o nome dirá pouco, mas é muito provável que o chef português mais conhecido no mundo seja Nuno Mendes. A sua carreira foi feita toda fora de Portugal, nos EUA e depois, desde há cerca de uma década, em Londres – onde tem aberto (e fechado) restaurantes notáveis.
O primeiro deles foi o falecido Viajante, que lhe valeu uma estrela Michelin nos idos de 2011. O segundo, o Chiltern Firehouse, ainda hoje um antro de celebridades. Bill Clinton esteve lá, David Beckham fez lá festas, diz-se que Lindsay Lohan e Kate Moss andaram à bofetada na sala.
Nuno Mendes teve também em Londres a Taberna do Mercado (com António Galapito, hoje no Prado, aos comandos), já encerrada. E, por fim, o Mãos, uma mesa comunitária com 16 lugares, com pouco mais de um ano e já no guia Michelin.
Vem este currículo a propósito da crítica desta semana. É que o BAHR, o restaurante gastronómico do renovado Bairro Alto Hotel, é a sua primeira assinatura em solo português, fazendo parceria com o chef executivo residente, Bruno Rocha. Mendes foi responsável pela concepção de cada um dos cinco espaços de comer e beber do hotel, enquanto director criativo; e, de entre esses espaços, o BAHR é a cozinha mais ambiciosa.
Estamos a falar de um fine dining, no sentido em que a carta é sofisticada e o mobiliário pede um blazer e uma écharpe. Mas não estamos em registo Michelin, com degustações de 12 pratos e música de elevador. Aliás, não há sequer a possibilidade de se pedir um menu de degustação. Quem quiser pode ficar-se pelas entradas ou pode só comer principais, e há um relativo à-vontade para se partilhar comida. Quanto à banda sonora, assim que saímos do elevador percebe-se ao que se vai, com palanque de DJ logo ali, música que se espalha pelo bar, pela sala e pela varanda sobre o Tejo.
O BAHR quer ter onda e vozearia – e tem um ambiente muito bonito. Na decoração imperam madeiras de estilo nórdico, vistas desimpedidas para a cozinha, ampla, os cozinheiros numa coreografia silenciosa.
Visitei o restaurante à noite, mas de dia também é bonito, com a luz do Tejo a entrar. É obrigatório começar e acabar a refeição na varanda contígua sobre o rio, já conhecida de muita gente antes de o arquitecto Souto Moura lhe dar outra beleza.
Ajuda que o sítio fique num 5.º piso, ao Largo do Camões. Parte do encanto do restaurante é também esse, ficar no topo de um hotel. Sabe-se que há alguma resistência dos lisboetas em atravessarem um hall, entrarem num elevador e jantarem acima do piso térreo. Ainda não se sentaram e já estão a pensar que alguém vai ter de pagar os dois porteiros que nos abriram as portas, mais os cadeirões da entrada, mais o ambientador do elevador – e que essa factura há-de vir no final da refeição. Por outro lado, estes restaurantes enchem-se de homens de negócios, mais concentrados nos offshore do que na comida. Ou seja, são frequentemente sítios caros para pessoas aborrecidas.
Este é o preconceito e o lugar comum. Tudo o que o BAHR não quer ser – e não é.
O conceito remete para cozinha progressista internacional, a partir de influências lisboetas e portuguesas. A abordagem não é nova. Nuno Mendes tem procurado concretizá-la em Londres, mas com a Ásia e o naturalismo nórdico a imiscuírem-se no prato. Neste BAHR, todavia, a portugalidade parece mais forte do que nunca, estando praticamente toda a carta assente em sabores portugueses remisturados.
Dois exemplos: as ostras com molho da Bairrada e os rissóis de camarão. As primeiras em trio (12€), qualidade certificada pelo Moinho dos Ilhéus, a operar na Ria Formosa, servidas mornas nas conchas com molho de pimenta e louro, à maneira do leitão. Parece uma loucura e é. Quanto ao rissol (dois, 6€), aconteceu magia, alta cozinha em todo o seu esplendor. Estranhei a primeira dentada, não sem alguma desilusão – isto não é um rissol, ainda por cima o camarão secou um bocadinho; na segunda, identifiquei a origem – especiarias, Índia; na terceira, só queria uma quarta e uma quinta. Que maravilha.
O que leva o recheio?, perguntei ao empregado? “Balchão”, disse-me, “um pó com sete especiarias”. A origem é a cozinha goesa, que por sua vez repescou a receita de Macau, onde o “balichão” é um molho feito a partir de camarão fermentado, ligeiramente adocicado, um caril distinto.
O porco alentejano é a carne que nos eleva mundialmente. Não admira que seja uma das eleitas pelo chef. Nos snacks aparece num tártaro com couve coração (7€). Nos pratos principais, em nacos (24€). A presa é uma peça extraordinária, extraída do final do lombo, mesmo antes do cachaço. Tem um marmoreado equilibrado, tenro, saboroso. Aqui veio dourada por fora, com puré de ervas e reminiscências de esparregado – sedoso, elegante, perfumado.
Nos peixes, há várias hipóteses, da lula ao pregado, do robalo de mar à pescada e ao lírio. Optou-se pela lula como entrada (17€), um dos pratos mais populares da casa. Veio cortado em juliana, tal como o feijão verde que o acompanhava (al dente), na base um creme de grelos. Na boca, duas texturas raras, veludo e crocância, notas doces e fumadas, amargos – outro grande prato. Para principais, a escolha recaiu no robalo de mar em canja de nabos, mini-nabos do mais doce que há, laminados crus ou inteiros, o peixe imerso no líquido denso. Bom, com sal a mais, não sei se justifica os 30€ pedidos.
Na secção das sobremesas, a aposta foi na maçã gelada com creme de miso e bolo de centeio e funcho (8€). Outra vez arte, vanguarda boa. Miso?! Funcho?! Aliás, picles de funcho! Maçã?! Pode isto ser uma sobremesa? Pode, sim. E extraordinária.
Nota para o couvert de pão com manteiga, sem invenções e sabores tontos (parem com o limão). O pão no estilo country loaf da nova padaria artesanal, com massa mãe, particularmente bem feito e saboroso. A manteiga é da açoriana Rainha do Pico, mas trabalham-na muito bem, deixando-a mais fofa e com notas subtis a caramelo.
Sobre o serviço, não está ao nível da ambição do restaurante nem do hotel. Três empregados descontraídos e sabedores da confecção alternaram com outro solto no disparate. Nos vinhos, pareceu haver alguma falta de segurança para sugerir e nem sempre houve atenção ao copo.
Em síntese. Este BAHR quer jogar no campeonato dos sítios da moda de nível culinário superior e tem aí uma palavra a dizer. Menos exuberante do que o JNcQUOI – para compararmos com um dos campeões –, mostra trunfos na cozinha, um espírito mais inventivo e uma clientela mais heterogénea. Pode bem ser um substituto do antigo Pap’Açorda do Bairro Alto, juntando elites de esquerda, libertinos endinheirados e boémios. Só há um probleminha: está-se a falar da gama acima dos 60€ por cabeça (bem acima, dependendo do apetite e dos vinhos, todos caros), dificilmente ao alcance do público nacional com profissões liberais de índole artística e espiritual.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.