Percebemos que uma cidade está a mudar quando um pequeno café de esquina em São Domingos de Benfica é tomado por uma cozinheira síria e de repente a vizinhança de professoras aposentadas e intelectuais de classe média, mas também de millennials e xennials, vão lá almoçar kufta e yalanji e beber chá de cardamomo e bolinhos de pistáchio.
O sítio era desses cafés que serviam almoços, gerido por um casal de portugueses, que decidiu arrumar as facas. O take over fez-se em paz, mas há uma guerra pelo meio. Baraa saiu da Líbia em 2017, era professora de Matemática, refugiando-se com o marido e os dois filhos em Portugal.
Por cá, a paixão pela cozinha acabou por levá-la a colaborar em eventos e a cozinhar para a Embaixada da Líbia. Já este ano, decidiu então lançar-se em nome próprio.
Na cozinha está só ela e outra ajudante e, na sala, encontramos um apoio notável. Fernanda, portuguesa sexagenária, vinda de Braga para Lisboa, é quem domina o espaço, sozinha. A figura lembra-me a amiga Olga, com o seu lenço ao pescoço, mas Nanda, como é tratada carinhosamente pelos clientes, não se fica por clichés.
Na verdade, Nanda domina a carta, cada ingrediente, cada técnica. E também domina a arte de bem receber. Antes de ir para o Baraa, trabalhou no Belmar, ali perto, e conhece bem os locais do bairro.
A dedicação que põe no ofício pode fazer pensar que ela é que é a sócia-maioritária – algo que trata de negar: “Não, não, eu aqui sou só empregada da senhora Baraa. Com muito gosto”. Bonito.
A pequena sala toda envidraçada para um cruzamento da Estrada de Benfica senta 16 pessoas, apertadas. A informalidade permite que se ajustem lugares para todos caberem e é normal acabar a mudar-se para a mesa do desconhecido do canto.
Este é o preço a pagar, todavia, para que o Baraa resista e que a conta seja mais baixa do que as que se cobram no Chiado, ainda que a comida seja elevada.
Vamos a ela. Não há floreados, nem pirotecnia, nem folclore, seja no prato seja fora do prato. Baraa cozinha como se estivesse em casa e cozinha muito bem. No menu, vemos clássicos do Médio Oriente, do hummus ao falafel, ao mutabal ou ao baba ganoush; mas sobram depois outros pratos notáveis mais raros, como o fatteh – com iogurte, tahini (do bom) e grão de bico – ou a farikah – de carne de vaca picada, trigo verde e arroz branco.
Ao almoço, os pratos do dia costumam ser só dois, mas ao jantar as escolhas alargam-se, sendo possível que também se estenda o tempo de espera.
O que não há é um vinho para acompanhar a refeição, por causa das convicções religiosas da senhora Baraa, o que pode ser uma oportunidade para provar o sumo de tamarindo, aqui feito com a hidratação do fruto e não com concentrados de pacote.
Um dos luxos maiores do Baraa é precisamente não haver atalhos para ingredientes sírios insubstituíveis. O Baraa investe em produto importado ou autêntico, como sejam as favas secas, que por vezes entram no fatteh, ou a flor de laranjeira, do arroz doce.
Há quem lá vá, precisamente, só buscar os bolinhos, vendidos para fora como se o Baraa fosse pastelaria. São todos óptimos. Os meus favoritos foram os ma’amoul de noz, umas madalenas deliciosas, mas também os há com pistáchio e outros recheios, em diferentes formas.
No final, peça o café sírio, mas com borra, que é mais intenso – conselho de Nanda, que acompanho.
Em síntese. O Baraa Kitchen é um tesourinho que devemos preservar. Que ninguém lá vá a pedir o céu, com as expectativas em sonhos gourmet mirabolantes. O Baraa é um negócio real, feito por três pessoas, nas circunstâncias de um ex-snack bar que não se remodelou, para locais de São Domingos de Benfica, a preços de São Domingos de Benfica.
Os de fora, como eu, devem preservar esse ecossistema, entrar e sair discretamente e levar o máximo de Médio Oriente que puderem, na barriga e na caixinha dos bolinhos. Abre cedo e ao jantar fecha cedo. Reserva altamente recomendada.