1. Bica do Sapato
    © Arlindo Camacho
  2. Brunch na Bica do Sapato
    Fotografia:Ana LuziaBrunch na Bica do Sapato
  3. Bica do Sapato - Hamburguer
    Fotografia: Arlindo Camacho
  4. Bica do Sapato
    ©Luisa Ferreira

Crítica

Bica do Sapato

4/5 estrelas
  • Restaurantes | Português
  • preço 3 de 4
  • São Vicente 
  • Recomendado
Alfredo Lacerda
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A Time Out diz

Ainda é uma porta difícil de abrir. Uns quatro metros de altura de vidro. Não é preciso força, não
 é preciso habilidade, mas tem de
se ter confiança. Confiança para falar com a recepcionista que simpaticamente nos agride com o seu estilo. E confiança para entrar na sala de pé direito altíssimo, com uma chefe de sala altíssima que nos agride com a sua beleza.

Pesa muito aquela porta. A pressão é enorme e nem todos passam o teste incólumes. Ainda antes de ter um pé lá dentro, fico sempre com a ideia de que toda a gente sabe que uso boxers H&M, que a peúga do pé direito tem um buraquito e que nunca vi uma peça do Teatro Praga. São pessoas com detector de simplório e simplório nunca aqui foi bem-vindo.

A conversa com a recepcionista, normalmente, confirma isto.

Desta vez, uma rapariga de cabelo exótico atira-me, sem dó, para a esplanada. São 19.30 de uma noite outonal, sopra uma aragem fresca do Tejo, o restaurante está vazio. Protesto suavemente, ela insiste na tese de que já havia outras reservas, eu lembro-me das minhas fragilidades de ser humano sem cuecas de grife e de não lhe dar gorjeta – aceito a minha condição.

Avanço e constato que, afinal, está mais alguém. No sofá corrido que dá para a cafetaria, do outro lado da lareira (incrível), encontra-se Fernando Fernandes, sócio e fundador do Bica, o homem que mantém o lirismo do sítio e não 
só. É comovente vê-lo assim. Anos antes tivera a mesma imagem e parece-me por instantes que ele nunca se ausentou. Está sozinho, a olhar em frente, sem um telemóvel na mão que seja, parece meditar, mas eu apostaria que nenhum movimento lhe escapa. Um velho restaurador zelando, sereno, pelo seu restaurante.

Durante mais meia hora a sala mantém-se praticamente vazia – e isso, sim, mudou, que há 15 anos era sempre um corrupio.

À medida que o tempo vai passando, começa por fim a
entrar gente, mas também aqui
há diferenças. Não vejo Victoria Beckham a pedir morangos (diz que aconteceu, no passado), nem a comunidade artista endinheirada de Lisboa; entram, sim, turistas, muitos turistas indiferenciados, malta com pinta de usar boxers Primark, todos encaminhados para a esplanada glacial com vista para o megacruzeiro MSC Fantasia, de onde suspeito alguns terem saído.

Quanto à comida, não se vêem concessões. Tal como as camisolas dos empregados continuam
a parecer pijamas, também a carta preserva a incoerência
de sempre, misturando coisas tradicionais portuguesas com coisas tradicionais estrangeiras, arroz de cabidela (bem bom) e risotos, cabrito assado e tártaro de bacalhau fresco, ceviches e lombo de novilho à portuguesa. Sempre foi assim, mas parece que, agora, mais do que nunca, Fernando Fernandes preserva esta filosofia, que é a sua filosofia e que colidiu com a veia autoral de alguns dos chefs que por ali passaram, de Fausto Airoldi a Alexandre Silva.

Hoje, os tachos estão entregues a Manuel Bóia e estão bem. Senão veja-se este jantar. Os sabores portugueses (12,50€) têm croquetes de rabo de boi e de alheira, pastéis de bacalhau e um torricato de tomate e presunto, tudo impecável (à excepção do presunto, seco). Vem também uma canja de pato (8,50€), de inspiração asiática, o caldo translúcido muito saboroso, e lá dentro um ravioli trufado.

Para principais, excelente o leitão crocante (20€), com um esparregado bem avinagrado, batatas chips e cogumelos. E igualmente irrepreensível o bacalhau à minhota (23€), um lombo demolhado no ponto, bem frito, com cebolada, regado no fim de azeite de alho laminado, e acompanhado de tomates-cereja assados.

Destaque para a carta de sobremesas, longuíssima. Só há estômago para uma, o bolo de mousse de chocolate branco com lima, tecnicamente muito bom, talvez um pouco de lima a mais (6,50€); e para o óptimo pastel de nata da Bica (2€).

Serviço competente mas um pouco atarantado.

Ou seja. O Bica é hoje como um desses carros que deixam de ser velhos para serem clássicos. A decoração já não causa o espanto de antigamente, mas está ali um repositório da modernidade lisboeta de 1999, a coisa verdadeira. Também na cozinha há demasiados resquícios de cogumelos portobello e de salmão, uma ou outra vanguarda ultrapassada, mas o motor feito de cozinha tradicional continua a ser fiável.

Outra coisa boa. O preço da refeição, nesta Lisboa louca, já não é uma loucura. Trinta e cinco euros por cabeça é o que se paga, hoje, numa lojeca de comida da Baixa. Sem o rio a seus pés.

Oxalá Fernando Fernandes não saia do seu lugar.

*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.

Detalhes

Endereço
Avenida Infante D. Henrique, Armazém B
Cais da Pedra, Santa Apolónia
Lisboa
1950-376
Transporte
Metro Santa Apolónia
Preço
Até 40€
Horário
Seg 17.00-00.00, Ter-Sáb 12.00-00.00, Dom 12.30-16.00
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