Houve coisas que me aborreceram no novo restaurante da Rua de São Paulo. Mas houve uma que me encantou tanto que estou capaz de voltar lá.
O mil-folhas de batata com pó de alga nori foi a maior gulodice que comi no último mês. Cubos amanteigados perfeitamente assados, cheios de umami marinho, o caramelo contrastando com o verde do cebolinho, camadas desfazendo-se na boca como bolinhos, descolando-se devagar, lânguidas e gordurosas.
Por oito euros, há poucas coisas na vida que proporcionem tanto prazer e, se me deixarem, eu hei-de lá voltar ao almoço, ao lanche ou ao jantar, e pedir as batatas com um cocktail ou uma garrafa de vinho, que lá há dos bons.
Pena, o resto não estar ao mesmo nível.
Dito isto, não se pode dizer que o resto, provado em duas refeições separadas por uma semana, tenha sido mau. Não foi.
Só que estes sítios sofisticados, que nos contam uma história e empratam com louça artesanal de estilo nórdico, tropeçam frequentemente nas suas próprias expectativas. E as deste Bica San eram altas.
Do que se lê na imprensa especializada, o conceito nasceu da viagem de um dos donos do hotel Independente, onde o restaurante está instalado, ao Japão. A ideia era criar um menu “de um gajo”, um san, “que vai ao Japão” e volta de lá cheio de ideias — eis a narrativa comunicada nos média.
Não sei quais terão sido as ideias de Bernardo d’Eça Leal, o dono viajante, mas a verdade é que o conceito tem uma aplicação pífia no menu.
O responsável da cozinha é Bruno Antunes, que cozinhou com o célebre chef Nuno Mendes, cujos restaurantes não são nem tipicamente japoneses, nem tipicamente portugueses.
Na carta, vemos piscares de olho a Portugal — como no yakitori de frango piri-piri ou de plumas de porco com amêndoas e nabo (prato relativamente falhado), ou na tempura de feijão verde (prato acertadíssimo) — mas não vemos verdadeira alma luso-nipónica, nada pelo menos muito coerente.
Quando perguntei à empregada sobre o donburi de atum ela esforçou-se por repetir a narrativa da fusão — sem ser convincente. Mas o que é que era ali tipicamente português? O atum? As algas? O molho dashi ou mirin?
“O arroz”, salientou.
Perdão?!
O arroz era de bago curto. E se há país onde o arroz é tratado como se fosse uma jóia, consumido diariamente em abundância, é o Japão. Ninguém no mundo sabe tanto de arroz, consome-o de forma tão distinta, consoante a época e o polimento, como os japoneses.
Se isto é grave? Não. O donburi estava saboroso, com arroz de qualidade (que não carolino) bem cozinhado, apesar de ter vinagre a mais.
De resto, foi quase sempre assim: em quase tudo havia um “apesar”.
A rabanada de matcha estava boa, suave, uma mousse natosa de pão. Apesar de não saber a chá matcha.
A espetada yakitori de plumas estava bonita. Apesar de ser difícil de morder e estar mais cozida do que grelhada.
Os empregados pareciam atenciosos. Apesar de saberem tanto do menu quanto o recepcionista do lobby.
Detenhamos-nos nos empregados. No último almoço, um deles recebeu-me perguntando que língua falava. Eu respondi: “português”. Ele virou costas e indicou-me a colega que falava português, ao fundo. “Eu posso falar em espanhol, consigo”, disse eu, percebendo-lhe o sotaque.
O rapaz aceitou então a complexa tarefa de me indicar uma das muitas mesas vazias.
Mais tarde, quando o questionei sobre o líquido escuro da sobremesa de iogurte fumado com pepino e granizado de shiso, ele foi igualmente incapaz. Primeiro, pediu um tempo e passado uns minutos voltou com o menu e leu a descrição do prato. Ora, na descrição – em português – estava tudo menos o líquido escuro (razão pela qual eu tinha perguntado sobre ele).
Perante isto, o rapaz encolheu os ombros, não parecendo passar-lhe pela cabeça ir perguntar ao chef. Ainda assim, confiante na sua prestação, antes de digitar o valor da conta no terminal do multibanco, atirou: “Vai querer deixar gorjeta?”
No, gracias.
Em síntese. O Bica San tem gente na cozinha que sabe fazer comida saborosa e bonita. E tem donos que sabem de hotelaria e de como montar uma sala para apreciadores de Leon Bridges e de vinhos naturais. Mas falta aqui esforço, aperfeiçoamento, presença crítica, consistência e coerência. Falta aquele investimento que distingue um restaurante razoável de um restaurante notável.
Apesar das batatas.