Rita Gama e Tomás Rocha trouxeram a Campo de Ourique uma cozinha que de mau tem pouco, ainda que os bichos sejam o que melhor faz o prato. Neste Bistrô Bicho Mau é a sazonalidade que manda na carta, numa liberdade que há muito era sonho dos dois.
A carta é pequena mas criativa. O couvert, com pão da Terrapão, manteiga e rillettes de pato (4€) é a porta de entrada. Segue-se o João-pé-de-ervilha (4€) o creme de ervilhas e pato wasabi. A neblina (7€) é feita de espuma de batata, espargos, presunto e ovo. E ainda o porco que queria ser ovelha (15€), onde o porco mangalitsa – uma raça de porco oriundo da Hungria – se faz acompanhar de couve em pão brioche.
Nas sobremesas há creme de banana com queijo e crumble de canela (5€), avelã, chocolate e cereais (6€) ou farófias com fruta e manjericão (5€). Tudo isto pode ser acompanhado pelo cocktail Bichomau (10€), por espumantes, uma selecção de vinhos – como o Casa de Mouraz branco (19€) ou o Beyra Reserva Quartz (4,5€) o copo – ou pelo vinho da casa, o Casa da Carvalha tinto, que chega da vinha da família de Tomás.
Crítica
Escrevo muitas vezes sobre dinheiro, aqui. Não é que tenha qualquer obsessão com isso (a preocupação que tenho com isso é igual à de qualquer pessoa que precisa disso). Mas porque entendo que, se não formos um francês milionário a gozar a reforma em Campo de Ourique, ou um advogado bem relacionado com o Bloco Central, ou a rapaziada dos truques financeiros e especulativos – se formos só uma pessoa normal que tem de trabalhar no duro para ir comer fora a um restaurante lisboeta, o preço da refeição é muito importante.
Ora serve esta introdução para dizer que este Bicho Mau é bom, por vezes até bastante bom, mas dificilmente me apanha lá novamente. Os 38 euros que lá deixei ao almoço, sem vinho – depois de me terem dito que a sobremesa não levava queijo de ovelha mas, sim, queijo da Serra – foram demasiado pesados. Caíram mal. Fizeram mossa. Azia.
Não significa que o casal que lidera o restaurante se esteja a abarbatar ao dinheiro das pessoas. Consigo, aliás, perceber que o restaurante seja caro. Basta olhar para o menu: requeijão de Serpa, carne maronesa, “legumes biológicos que uma senhora do Alentejo nos traz”, sapateira, algas, lula de anzol, pinhão, folhas de lima kaffir, o exclusivíssimo porco mangalitsa. É muita coisa boa, é muita coisa cara e se, ao custo do produto, acrescentarmos o facto de ser quase tudo feito na casa (mão de obra qualificada) e de estarmos em Campo de Ourique (um dos bairros com o metro quadrado mais caro da cidade), temos inevitavelmente uma conta alta.
A questão é que a justiça da conta é secundária. O meu raciocínio deve ser o raciocínio do cliente: valeu ou não valeu o dinheiro? Mesmo que eu saiba – enquanto crítico – que a maronesa é uma carne incrivelmente difícil de conseguir e incrivelmente cara e o cliente não. Mesmo que eu conheça a história do porco mangalitsa, uma raridade zoológica em Portugal, obra de um belga que se fixou no Fundão – e o cliente não. As questões que faço a mim próprio são sempre as mesmas. O que te aconteceu na boca? O que aconteceu à tua volta? Marcou-te? Queres voltar a sentir o mesmo? Estás disposto a pagar outra vez 38 euros?
Vejamos a experiência. Almoço, sala vazia. Chegamos e somos simpaticamente atendidos. Perguntam se queremos o couvert e nós queremos. Pão da padaria Terrapão, em Arroios, aquecido mas não ao ponto de nos fazer esquecer que é do dia anterior. Boa manteiga de ovelha e razoável rillette de pato. Preço: 4 euros.
Dão-nos também a indicação de que há pratos do dia fora da carta, na verdade pratinhos. Pratos do dia fora da carta costuma significar pratos de oportunidade, mais económicos. A empregada não diz o preço de dois deles, nós vamos pela carne maturada de mangalitsa, às escuras, confiando na boa-fé e na tradição. É notável a carne, com uma ligeira doçura, notas a presunto, só cortada em tiras, ainda rosada por dentro, mas falta-lhe aquela crosta da reacção de Maillard. Preço: 20 euros.
Continuando a auscultar a empregada, ficamos a saber que entre os pratos mais populares está o peixe fumado com queijo de São Jorge e pickles. A espécie de peixe usada é o escolar, vindo dos Açores, não particularmente de boa fama nas Ilhas, por ser “passível de causar efeitos gastrointestinais adversos” (citação do Departamento de Segurança Alimentar e Certificação da Lotaçor). Surge à mesa fechado em campânula, o fumo enchendo o ar de cheiro a lareira, o São Jorge ralado por cima e azeite de folhas de lima kaffir. Os pickles são alcaparras. Não provoca qualquer desarranjo ao nível do aparelho digestivo ou de qualquer outro, mas também não provoca particular simpatia. Preço: 14 euros.
Outro peixe, este corvina, um lombo perfeito, mas pouco maior do que o dedo indicador de um adulto, por baixo um caldo inspirado na sopa tom yum, da Tailândia – excelente; em redor uma cenoura bringida, mini-rabanetes, batatinhas e cogumelos enoki – todos fantásticos de sabor e textura. Preço: 14 euros.
Por fim, o tártaro de carne de raça maronesa, extraordinário bicho que habita em Trás-os-Montes. Carne cortada à faca e não moída, como deve ser, tempero apuradíssimo e equilibrado nos ácidos. Se comermos só assim é uma receita clássica, muito bem praticada, mas o prato vem servido com um papari indiano e um chutney de ameixa. Colocar um tártaro de maronesa sobre um papari pareceu-me o mesmo que grafitar um diamante azul, mas a verdade é que resultou, transformando completamente o prato. Preço: 13 euros.
Acresce o creme de banana e queijo (6 euros), o queijo numa camada à parte, destoante. E acrescem a limonada da casa e o chá da casa, ambos bons e docinhos (2 euros cada).
Tudo dado e baralhado, o Bicho Mau fica aquém das expectativas. Há talento e técnica na cozinha e também há bom gosto. Mas este ainda não será o restaurante com o sucesso que Tomás e Rita, jovens com experiência em cozinhas modernas, nacionais e não só, merecem e de que são capazes. No final, ninguém está a abarrotar ou perto disso. Há uma sensação de relativo desconforto no silêncio da sala e na falta de hidratos de carbono. Foram só duas batatinhas do tamanho de berlindes abafadores. De resto, proteína pouca, legumes poucos e dinheiro muito.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.