Andava para ir ao Boubou’s há muito tempo. Sucede que, desde que a chef residente, a luso-francesa Louise Bourrat, venceu o concurso Top Chef francês e tomou conta da cozinha, o restaurante tornou-se num dos fine dinings mais procurados de Lisboa.
A reserva é difícil, por essa razão, mas não só. Os requisitos não ajudam, também. Quando entramos no site para fazer a marcação de mesa (obrigatória), temos de passar por um processo de respostas e admissões e considerações, garantir que não levamos crianças com menos de 12 anos e que não vamos falecer com uma alergia ao amendoim e deixar o cartão de crédito com caução e tudo isto através da leitura de um texto denso como um contrato bancário.
Pronto. Desabafei.
Agora, só coisas boas.
Coisas deliciosas.
Que grande jantar.
Vão lá. Vão já.
Suspeito que o restaurante vai ganhar uma estrela Michelin, porventura este ano. E quando o Boubou’s ganhar a estrela, já sabemos que vai ser ainda mais difícil reservar e que vai ser ainda mais difícil pagar. E também já sabemos outra coisa: restaurantes deste calibre costumam estar no pico de forma antes da estrela, não depois.
Outra coisa que impressionou foi ter ido num dia em que quem estava a liderar era a subchefe Clémentine Duboin, mas mesmo na ausência de Bourrat tudo correu impecavelmente.
Vamos ao que aconteceu. Fui jantar sozinho. Jantar sozinho pode influir numa refeição deste tipo. Por duas razões: uma, tem a ver, precisamente, com o “factor inspector”. Quando alguém reserva mesa para uma pessoa, num restaurante deste género, do outro lado soa um alerta: sobretudo se a pessoa for um homem (lamentavelmente), português ou espanhol – que é o perfil-tipo dos críticos, sobretudo dos críticos do guia dos pneus.
A outra razão pela qual ir jantar sozinho pode tornar a experiência diferente é que estamos mais atentos a tudo. Por exemplo, podemos criar teorias sobre os clientes baseadas apenas na forma como eles agarram nos copos.
Ao fundo, está um grupo anglo-saxónico ruidoso que pega nos copos de Giz Baga com a manápula toda, como se fosse um copo de gin, desconhecendo que aquele tinto ganhará se não for aquecido pela temperatura corporal.
Já encostado à parede vejo um casal de homens sexagenários com uma abordagem completamente distinta: agarram nos copos pelo pé, giram o vinho e cheiram-no e continuam a falar fixados um no outro, e o vinho roda em espiral sem respingar, só três ou quatro vezes. Se fizessem isto de forma repetitiva, diria que eram enófilos exibicionistas, mas fazem-no na medida certa, só o suficiente para o néctar de ânfora da Geórgia soltar os seus aromas: provavelmente são produtores da Alsácia, ou coisa do género. Se eu fosse sommelier, ia dar-lhes muita atenção.
Outras coisas para as quais o cliente solitário está mais atento deixam-no simplesmente sorridente, como o casal francófono que chegou directo da praia, ele de calções e t-shirt, ela de vestido solto, sans rien en dessous, vive la France! (pessoas que, claramente, não leram o contrato da reserva, onde se desaconselha o traje de veraneio).
Mas o mais importante, na experiência a solo, num fine dining com menu de degustação deste calibre, é mesmo a prova. É preciso a concentração da solidão para ouvirmos as explicações da empregada e depois é preciso foco para desfrutarmos do que se passa na boca em pleno. E passa-se muita coisa. No Boubou’s passam-se pelo menos uma dezena de coisas, que é o número de pratos e pratinhos que vem no menu mais pequeno, teoricamente de sete momentos, mas com uns extras pelo meio.
Na abertura, viu-se logo delicadeza. Nada muito fora dos amuse bouche de Michelin clássico: a costumeira tartelete, aqui finíssima e estaladiça, com creme de ovas de ouriço e ovas de truta; um mini-charuto de gamba, muito delicado, com flor de sabugueiro; e um parfait de frango intenso, com a graça de ter esferificações de milho no topo.
Abertura elegante e deliciosa, antes de chegar o couvert: cesto de pães de massa mãe tostados, bolacha dos restos dos mesmos, azeite com casca de citrinos, manteiga de miso caseiro e de alga nori. A alga nori haveria de aparecer mais vezes: a enrolar uns lombos de robalo, no prato de peixe, fabuloso, acompanhado de um creme de ostra e berbigões, desses berbigões intensos; e também, a rematar, na mignardise de gelado de nori, cacau e caviar – a loucura de umami que Louise Bourrat escolheu para se despedir dos clientes.
Depois do pão, não demorou a chegar a barriga de lírio dos Açores, um dos pratos que se mantém no menu. O peixe deixa um lastro de gordura sedosa na boca, complementado por um caldo avinagrado de ponzu e óleo de trufa – mas não desses azeites enjoativos de loja gourmet, só aquele toque terroso do fungo, infusionado na casa.
O estilo apontava para a Ásia, mas os recursos da vencedora do concurso Top Chef são muitos.
Um dos pratos mais interessantes da noite juntou carne e peixe. A empregada optou por não desvendar logo os ingredientes: “Vamos querer que os tente adivinhar, antes. É um prato que diz muito à nossa chef”. Língua de vaca cozida, por cima enguia fumada. Mais difícil identificar o molho ravigote, uma espécie de maionese sem ovos, tradicionalmente feita com azeite, vinagre, mostarda e alcaparras.
Chegou depois um clássico em restaurantes deste campeonato, desde há uns anos: a presa de porco. A presa é um corte retirado do cachaço, que os espanhóis têm por hábito separar. Fazem eles muito bem, porque é um músculo com uma gordura infiltrada muito homogénea, uma delícia, tenra e intensa de sabor.
Aqui, no entanto, Louise dá-lhe uma volta, apresentando-a com amêijoas, numa recriação da carne de porco à alentejana.
No que toca a doces, apesar de o menu escolhido ter sido o mais curto, houve direito a duas sobremesas: ambas fora da caixa. A primeira, uma panacota de CBD, com iogurte fumado. A segunda, um dos pratos emblemáticos da chef, o gelado de shitake, com alho negro, farofa trufada e chocolate – uma das sobremesas com as quais a chef conquistou o júri do programa em França.
Em síntese. O Boubou’s mostrou cozinha e serviço de nível Michelin, com o bónus de ser mais surpreendente do que a maioria dos fine dinings deste nível e de cobrar menos. A cozinha de Louise é inventiva, mas não é tonta e o produto é de primeira qualidade e tratado com delicadeza. O serviço mostrou-se simpático e atento, com dois ou três percalços sem significado – que porventura só mesmo um inspector com lupa assinalaria.
Com 140€ comi o menu de sete momentos, um cocktail e um copo de vinho e ainda dei 13€ de gorjeta (incluída automaticamente na factura). Por este preço, não se come em nenhum Michelin de Lisboa, hoje em dia.
Se pensa em cometer uma loucura de uma noite, o Boubou’s pode bem ser uma boa opção. Só tem de ultrapassar o sistema de reservas.
Crítica originalmente publicada na revista de Verão 2024 da Time Out Lisboa