Para se perceber o Busan é preciso alguma sensibilidade. Sendo um barbecue coreano, em que o cliente é que finaliza o prato na chapa gogi-gu-i, há o risco de se achar que não tem cozinha.
O meu amigo Esteves tem pouca sensibilidade. “Um gajo é que faz tudo”, atirou, logo à chegada, enquanto se instalava e apreciava o ambiente galáctico da sala, com as suas chaminés descendo do tecto e mesas em alumínio e inox.
Ora, Sun Too, uma simpática empregada do Nepal, acercou-se mal nos sentámos, com a missão de desmentir o Esteves. No Busan, o staff tem um radar para estreantes e para pessoas que só comem bife da vazia e acham que kimchi “é nome de actriz porno japonesa” (Esteves, 2023).
Sun Too ficou por perto e tostou na perfeição a carne “floco de neve”, um dos cortes mais nobres de Wagyu. Wagyu é um boi de origem japonesa, que já se produz em várias partes do mundo e tem um marmoreado magnífico. Costuma ser muito cara, mas aqui é só cara. Por 28€ faz-se a festa.
O menu do Busan é uma aula de cortes carnívoros, com fotos ilustrativas e coisas raras e deliciosas, como a entranha de Black Angus, o diafragma bovino, segredo dos homens dos matadouros.
Com uma entranha (20€) temos proteína animal suficiente para duas pessoas (se a segunda pessoa não for um Esteves), mas ficamos com a sensação de ir a Fátima e não ajoelhar.
É que sobram dezenas de outras possibilidades, da língua a várias peças do porco preto, passando pelo cordeiro e por mariscos diversos. Para um grupo de quatro pessoas curiosas, o melhor será mesmo pedir a roda gigante, onde há um pouco de tudo, como aliás fez a mesa ao lado, onde pontificava um ex-extremo direito do Benfica, conhecido pelos altos níveis de testosterona.
Depois, é só não se esquecer dos vegetais, que aqui são fresquíssimos e preparados com ciência. Os meus preferidos são os cogumelos agulha, mas também a beringela, a cebola e a batata, tudo cortado finíssimo na mandolina mesmo antes de virem para a mesa.
Regressamos ao gogi-gu-i. Quando Sun Too nos deixou, as coisas ficaram um pouco caóticas. O Esteves, na sua voracidade, pescava tudo antes de tempo. Eu errava os timings: ora estava à espera, ora parecia que tudo se estava já a queimar e tinha de despachar serviço. Com um Esteves ao lado, o barbecue coreano pode parecer uma corrida de F1, sendo que ele é sempre o Verstappen.
Um erro comum é pormos a carne toda no assador e esquecermo-nos do que parece acessório. Aqui, não é acessório o kimchi, feito na casa diariamente: suave, para principiantes, mas com a couve fresca e limpa, ligeiras notas ácidas, da fermentação. E também não são acessórios os molhos, igualmente caseiros, ou o pó de cominhos e amendoim moído, perfeito para colar à folha de alface.
A alface é o que embrulha tudo no barbecue coreano. O meu embrulho preferido era feito de quatro ou cinco pedaços de carne, cortados com a tesoura, cebola caramelizada, cogumelos agulha bem tostadinhos, molho picante e pó de cominhos e amendoim. Fecha-se a alface e leva-se à boca.
Às vezes, o embrulho embrulha mal e o molho escorre-nos pela mão. Faz parte do encanto. O Esteves acabou a arregaçar as mangas, muito contente.
Sun Too reapareceu sorridente, já no final, para saber dos seus pupilos. “Maravilhoso”, atirou o Esteves, e eu corroborei, apesar de ter comido metade do que ele despachou, e voltei no dia seguinte para confirmar o veredicto.
Em síntese. O Busan é um restaurante muito sério. Sob a capa do foguetório asiático, das rodas gigantes e dos milk teas coloridos com gelo em forma de urso, tem uma cozinha de grande nível. Uma cozinha que mostra como é importante a selecção e a preparação dos ingredientes.
Hoje em dia, muitos chefs célebres, com boa assessoria e jeito para apanhar o ar do tempo, gostam de falar de cozinha de produto e vendê-la a preços de fine dining. Ora, o Busan não tem chefs célebres, nem preços de fine dining. Mas produto não falta.
Vão lá. Com juízo. Sem o Esteves.