A honestidade é uma coisa barata. Não quero com isto dizer que vale pouco – apenas que é uma virtude valorizada consoante o preço. Exemplo. Se dizemos que um vinho é honesto, falamos talvez de um vinho consensual, redondo, sem grande ciência, mas falamos certamente de um vinho barato. É honesto porque é bonzinho e não finge ser outra coisa; mas sobretudo é honesto porque, sendo o que é, até nem é caro.
Creio que o mesmo se aplica aos restaurantes. Se descubro uma capelinha com comida de conforto, sempre bem feita e sem grandes truques, onde após várias inspecções não consigo topar nada aldrabado, e no fim nunca me pedem mais que uma nota de dez para ir das azeitonas à sobremesa com tudo a que tenho direito, apetece-me dizer simplesmente que o sítio é honesto e não estar com mais conversas. Honestamente, é o caso. Ainda assim, já que me encomendaram o sermão, terei de vos maçar com mais algumas palavras.
O nome Cabana da Estrela lembra a manjedoura do presépio e a casa é gerida pela santíssima trindade das tascas lisboetas: mãe na cozinha, pai ao balcão, filha nas mesas. Na sala acomodam-se duas dúzias com boa vontade e convém chegar sempre antes do meio-dia e meia. Depois disso, santa paciência, é esperar ou ir pregar noutra freguesia. Lá dentro, misturam-se os coletes reflectores da malta que anda a escavar o Metro na Estrela e as camisas engomadas de quem trabalha às portas da Lapa. De resto, o cenário é o que se espera – balcão em inox, toalhas em papel branco, ementa em ardósia, paredes em azulejo: tudo segue o cânone típico das casas de pasto desde o tempo em que borrego se escrevia com circunflexo (aqui, na verdade, ainda se escreve).
Estreio-me na Cabana a uma segunda-feira, precisamente quando os fiéis vêm adorar um óptimo anho no forno, e durante toda essa semana acompanho religiosamente a liturgia dos pratos do dia: terça a assembleia congrega-se na feijoada, quarta vai tudo à fava, a quinta é do cozido, a sexta do bacalhau com grão. Acresce que, como vou trazendo companhia, comungo também das moelas estufadas, dos rojões, da pescada frita com arroz de tomate, dos chocos guisados. E no fim, o que tenho eu a dizer? Que é tudo bem feitinho – assim mesmo, com um diminutivo, que é outra forma de arredondar a conversa. Sobretudo a comida de tacho, sempre com mão certeira e lume paciente.
A feijoada, por exemplo, que se diz à transmontana, traz uns pedaços tronchudos de couve e um macinho de arroz, mais uns bocadinhos de boa farinheira. Traz também uns nacos de porco que desconfio serem os mesmos dos rojões, que no dia anterior me tinham chegado bem temperados de pimentão e denunciaram irremediavelmente as origens nortenhas da casa – fosse isto gente do Sul, e podiam sem problema chamar-lhe carne do alguidar. Já o bacalhau das sextas, sendo também honesto, parece mentira: por 6,5€, bato- -me com uma belíssima posta média, bem demolhada e a lascar, e uma pilha de grão demolhado também a preceito.
Quem quiser saladinha, peça à parte, que as travessas de inox só têm 25 centímetros e não sobra espaço para essas frescuras. Há um arroz branco, daquele com fritura prévia para ficar solto e guloso, e umas óptimas batatas fritas que servem de guarnição a quase tudo – ao borrêgo, às moelas, aos rojões, aos chocos guisados (sim, aos chocos, e resulta lindamente).
Tudo isto, está bom de ver, é para acompanhar com tinto da casa, sobre o qual há duas importantes escolhas a fazer: jarro pequeno, médio ou grande; vinho natural, fresco ou meio-meio. E lá está – eu, que nunca fui enganado por um vinho, apenas por quem o serviu, gosto de gabar a honestidade dos tintos redondos e macios a granel. E este não diz mal da casa, nem engana ninguém.