Na primeira vez, cheguei já tarde e a Tia Alice já estava a almoçar numa mesa encostada à parede, sozinha. Sentei-me de frente para ela e pude desde logo sentir a sua presença. Ao mesmo tempo que comia, a dona do restaurante mantinha vigilância apertada sobre o serviço e sobre o novo cliente. “A cachupa refogada é do dia anterior”, atirou firme, muito elegante no seu cabelo armado, sem tirar os olhos do prato, falando por cima da empregada.
A Tia – como todos lhe chamam – é uma dessas mulheres cabo-verdianas que se fizeram na força e na dureza. Aos nove anos já cozinhava para os dez irmãos. Depois, saiu da sua Ilha de São Vicente e veio para Portugal, onde andou de restaurante em restaurante até se fixar, em nome próprio, nas Laranjeiras, cinco minutos a pé da Loja do Cidadão.
A cachupa refogada leva tudo o que leva a cachupa rica, do milho branco ao feijão congo, mas é estalada em cebola na frigideira, com um ovo estrelado a cavalo. A cachupa refogada é uma das especialidades do restaurante e o melhor curativo para quando o estômago vem de uma sova de grogue ou outro etílico.
O grogue da Tia Alice também é especial, feito com rum de Cabo Verde (“senão, não fica igual”), limão e mel, também ele das ilhas africanas.
“É uma maravilha, nunca provaste?”
Gosto que a Tia trate logo as pessoas por tu, qual “mama”, e gosto que elogie a sua própria comida. Pessoas como a Tia, quando elogiam a sua própria comida não se estão a elogiar a elas próprias, porque a comida é-lhes uma entidade exterior. Elas vão adorar comida, porque são seguras e têm brio no que fazem e porque adoram cachupa, qualquer boa cachupa.
No seu restaurante, por encomenda, pode-se ainda pedir à Tia que faça uma cachupa de cevada, que é uma maravilha.
De resto, ao longo da semana servem-se outros pratos, da moqueca de camarão à moamba de galinha (na verdade, frango do campo), das iscas (marinadas de véspera, como deve ser) ao arroz de pato (“que não tem nada a ver com o vosso”), feijoada de feijão congo, polvo de cebolada.
Há também um menu de almoço barato e bom que permite estes petiscos e mais alguns por dez euros, o que para os dias de hoje é uma descoberta ao nível da penicilina.
O problema de se optar pelo menu é passar as sobremesas, secção aqui obrigatória. A Cachupa da Tia Alice gaba-se de ter um cozinheiro inteiramente dedicado à pastelaria e doces, das poucas pessoas que podem tratar Alice sem ser por tia. Cláudio, filho da dona, faz uma mousse de camoca extraordinária (com farinha de milho torrada), e outra de manga (com manga a sério), para não falar nos pudins de queijo de cabra (queijo a sério, semi-curado) e de coco.
Quanto ao espaço, é amplo, luminoso e despersonalizado, porventura um pouco frio, sem ambiente étnico, mas impecavelmente limpo, tanto na sala, como na cozinha semi-aberta.
Em síntese. A Tia Alice é um valor seguro, pelas cachupas e não só. Tem tudo sabor, é tudo feito de raiz e é tudo a preço justo. Que mais podemos pedir, Tia?