Sempre gostei de ser da casa. Adoro o conforto de pertencer a lugares que não me pertencem, mas sobretudo aprecio o elogio. Porque ser da casa é ser escolhido, destacado do resto, posto num discreto pedestal. Por isso, sempre entendi que tudo o que é da casa lhe serve de cartão de visita, seja a clientela ou o vinho. E por isso me entretenho tantas vezes a tirar as medidas a uma coisa e a outra.
Estreio-me no Cacué, pequeno restaurante em Picoas. São 12.31 de uma sexta-feira, não há vivalma sentada, mas a casa está pré-atulhada. “Seja almoço ou jantar, é sempre melhor reservar”, adverte o anfitrião enquanto soma cabeças ausentes e subtrai mesas vazias. Sorte a minha, restam duas para dois. “Dentro ou fora?” Dentro é um bistrô simples e elegante, salinha tranquila de 20 lugares, balcão de bar, garrafeira à vista. Fora é uma esplanada para 18, meio resguardada da azáfama da Tomás Ribeiro. “Fora, obrigado.”
Nem dez minutos e a casa compõe-se com uma tribo de bom trato e boa pinta de Saldanha, mais almoços de família do que de trabalho. É gente da casa encaminhada para mesas habituais, que conhece a ementa de cor e pede o costume, num ritual que é sempre bom cartão de visita. E a visita sou eu.
Na carta percebo que pouco mudou desde que tive notícia do lugar pelo estimado Alfredo Lacerda, que aqui foi feliz nos idos pré-pandémicos. Foi retocada, o preçário ajustou-se (em dois anos os pratos somaram dois euros), mas tudo se mantém na linha que aqui me trouxe, de clássicos portugueses com apuro e sem voltinhas. A lista inclui um prato certo por cada dia de semana (9,50€), além de uma ementa fixa com os preços a começar nos 10,50€ para as bochechas de porco ou o bacalhau à Brás, e a terminar nos 36€ para um arroz de carabineiro. São umas 15 escolhas que, garantem-me, saem todas na bisga, excepção feita aos arrozes (há também um de cabidela e outro de lingueirão), terminados na hora, conforme a lei.
Comecemos pelas entradas como é suposto. Vamos num rissol de berbigão (2,50€), que na verdade mais parece pastel de massa tenra, levemente estaladiço, o bivalve limpinho, num recheio perfumado de alho e coentro. Soube a pouco. Depois um belo croquete de rabo de boi (2,5€), bem frito, enxuto, sobre boa mostarda, a carne a desfiar-se em guisado. Soube a menos ainda.
A conversa a sério começa com uns filetes de peixe galo. O bicho a lascar, polme perfeitinho, fritura branda, servido com uma excelente açorda, que fala ao meu coração meridional. De novo o perfume de coentro num creme de pão fofo, suave, a prometer digestão fácil apesar do alho pouco cozinhado como se quer, apenas uma ligeira – e calculo que propositada – falta de sal que se corrige no prato.
Seguimos no pernil assado no forno, que é estrela das sextas-feiras. Um suíno de boas famílias, saboroso, levemente a estalar por fora, a fazer-se passar por leitão, um bom molho à parte, feito à base de uma cebola desmilinguida num refogado de horas. Umas boas batatas fritas e é só, que por aqui a monogamia é regra nos acompanhamentos.
Terminamos com um abade de Priscos firme, denso e meloso, no ponto entre ovos e gordura, sem ser estratosfericamente doce (5€). Em resumo, tudo bom produto trabalhado a preceito, com aquela descomplicação complicada de alcançar. Para fechar a conta, resta o vinho. Voltemos atrás.
Conto umas 32 entradas de vinhos, todos de boas casas, mas nenhum desta em particular. A coluna da esquerda é cuidada, a coluna da direita não é exagerada, arranca nos 14€ e trepa por aí acima. Opto pelo mais barato, por três razões: porque é a melhor forma de avaliar a bitola; porque isto de andar à cata de bons restaurantes para todos os dias exige contas em conta; e, claro, porque sou forreta.
O mais barato acabou, lamentam, mas têm uma boa proposta alternativa. “Um Dão com corpo, mas suave: quer experimentar?” Quero. Trazem-me um Quinta do Margarido e, por momentos, aqui o Zé acha que o toparam. Mas não, coincidência apenas. Descontando estar uns quatro graus acima da temperatura certa (lá me improvisaram um frapé), foi escolha acertadíssima. Se o fizerem da casa, faço-me da casa também.
A crítica de José Margarido foi publicada a 13/10/2021
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.