Está tudo como antes, como se fosse um museu vivo da cozinha indo-portuguesa. O grande Sebastião, alma do restaurante, morreu em 2018, mas a filha Ana Fernandes tem zelado para que não se mexa em nada, incluindo nas garrafas de Mouchão e Barca Velha, já transformadas em vinagre, que forram a parede.
Não mexer em nada implica muitas coisas, sendo talvez a mais impressionante que a generosa Dona Lina, 30 anos a dar conta de especiarias e tachos neste cantinho em São Bento, tenha de fazer todos os dias o caril de gambas, um processo artesanal onde gasta quase duas horas.
O prato é um dos tesouros do restaurante, sendo feito com os sucos do coco ralado espremido à mão pela histórica cozinheira cabo-verdiana. O que sobra é um sumo delicado que há-de engrossar até ficar sedoso, uma mantinha quente para cobrir camarões grandes, suculentos, impecavelmente cozinhados.
Estão também iguais ao que eram os bojés do Cantinho da Paz, fritos na hora, feitos com cebola e cominhos e farinha de grão. E o mesmo se pode dizer das chamuças de carne, cujo segredo está num golpezinho de mostarda e numa massa dura e crocante como um Cheetos (que Sebastião me perdoe).
A única coisa que Ana Fernandes admitirá não ser igual é o famoso chacuti, esse prato dos deuses, à base de uma molhanga negra como um beco do bairro de Velha Goa. A receita é a mesma que Sebastião tornou célebre, e até foi publicada em tempos na imprensa, para que o mundo a aprendesse. Mas uma coisa é a letra, outra coisa quem a canta. “Não consigo fazer igual”, admite a filha.
Ana Fernandes dirige a sala com sobriedade, sem a extroversão austera do pai, mas a clientela é-lhe fiel, entre eles deputados e funcionários da Assembleia da República, ali plantada em frente, cujos segredos e intrigas continuam a ser calados, como se fazia no tempo de seu pai, extraordinário anfitrião, capaz de ler a mente do cliente quando ele ainda vinha na Calçada do Combro.
Num dia de semana normal, é comum ver-se João Soares a entrar esbaforido e esfomeado, fazendo o pedido assim que passa a porta de entrada, dirigindo-se directamente à zona de passe da cozinha e pedin do celeridade, que está cheio de pressa.
Ora, pressa é coisa que não se deve ter quando se vai ao Cantinho. Lina está sozinha na cozinha (apertada como um corredor), Ana está sozinha na sala (onde se sentarão umas 20 e poucas pessoas). Tudo é feito na hora, fora os molhos para os caris e a incrível bebinca.
Para quem não sabe, a bebinca é uma obra notável da arquitectura doceira congeminada entre portugueses e goeses. Não é um doce da Índia, é de Goa, e é feito com tantos ovos quantos os de um pão de ló, sendo que a sua montagem obriga a assar cada uma das camadas à vez. A montagem e desenformagem da bebinca é também um processo delicado.
A bebinca do Cantinho é produzida por Soraia, irmã de Ana, que também fornece outros restaurantes de excelência em Lisboa, como o irmão Tentações de Goa.
São já poucos a dedicar-se a este artesanato, como são já poucos os restaurantes goeses em Lisboa dignos do génio da fusão culinária indo-portuguesa. Que o país saiba preservar e valorizar esse legado e, sobretudo, que nós, os clientes, percebamos que a alma dos restaurantes não se recria com decoradores e empreendedores instantâneos, mas faz-se de pessoas, do seu amor e da sua presença. Como a do Sebastião. Como a da Ana.
É ir lá, muitas vezes. Com respeito.